A vida de Jesus Cristo, a mais conhecida estória do mundo, foi eternizada pelos Evangelistas no Novo Testamento bíblico. Não há um escrito de mão própria de Jesus. José Saramago conta que a inspiração deste livro surgiu de uma inusitada ilusão de ótica: “Atravessando uma rua em direção a um quiosque de jornais, li: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Parei um pouco adiante e disse: “Não pode ser”. Voltei atrás para certificar-me de que efetivamente não estava lá nada”.
O Evangelho segundo Jesus Cristo é a versão saramaguiana da vida de Jesus. Erra quem pensa se tratar de uma mera crítica à religião. O livro é honesto, limpo, cheio de beleza e preenche com sua prosa ficcional as lacunas bíblicas sobre as quais nada se sabe (p.ex., a infância/adolescência de Cristo), além de recontar os episódios conhecidos com ênfase no humano. O Cristo deste livro é mais homem que divindade, do início ao fim: “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por este mesmo e único motivo” (p. 81).
O livro se abre com Maria recebendo a visita de um mendigo que anunciará sua gravidez. E aí serão introduzidas duas figuras que atravessarão todo o romance: o misterioso mendigo, que assumirá outras identidades até se revelar, e a tigela negra, que reaparecerá ao longo da vida de Jesus e encontrará seu destino na última linha do livro. Os dramas seguintes são elegantemente resolvidos, com destaque para a culpa aflitiva de José e a relação de Jesus com Maria Madalena. Aliás, este diálogo entre Jesus e Maria Madalena é uma das passagens mais bonitas da obra de José: “Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos” (p. 429).
Por fim, não se pode falar deste livro sem citar o capítulo que narra o encontro de Jesus, Deus e o Diabo numa barca em meio ao nevoeiro do mar da Galileia (pgs. 361/398). Os diálogos, com seus enigmas e revelações, dão mostras da genialidade do português. É a obra-prima dentro da obra-prima, um dos fragmentos mais espetaculares da literatura. Cristo percebe Deus e Diabo muito parecidos, quase gêmeos, e Deus sentencia: “Meu filho, não esqueças o que te vou dizer, tudo quanto interessa a Deus, interessa ao Diabo” (p. 367).
Motivos para ler:
1 – O único Nobel das letras portuguesas teve, aqui, um ponto polêmico em sua carreira. O livro, aclamado pela crítica, foi naturalmente cotado para participar do prestigiado Prêmio Literário Europeu de 1992. Foi, no entanto, censurado pelo governo português. José, indignado com a brutalidade, mudou-se para Lanzarote. A reconciliação entre José e o governo de seu país só veio anos mais tarde;
2 – Por que um ateu resolveu escrever sobre a maior das estórias cristãs? Responderá Saramago que sua literatura não seria a mesma sem Deus porque se considera um ateu produzido pelo modelo cultural do cristianismo;
3 – E disse José: “O fator Deus não tem nada a ver com Deus. É usar a ideia do Supremo para coisas que não têm nada a ver com a religião.” Atualíssimo. É disso que se trata quando vemos fanáticos barbarizarem uma menina estuprada na porta de um hospital ou governos querendo introjetar dogmas religiosos em suas sociedades. Atitudes funestas falsamente praticadas em nome do divino.