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Dica da semana: Destacamento Blood

12/06/2020
Dica da semana: Destacamento Blood | Jornal da Orla

A Guerra do Vietnã ocorreu em meio as primeiras manifestações pelos direitos civis dos cidadãos afro-americanos nos Estados Unidos, sendo que os mesmos representavam um terço dos soldados convocados para o combate. Na época, líderes como Malcolm X e Martin Luther King, questionavam o motivo destes homens que, desde sempre foram escravizados e tratados como pessoas de segunda classe, deveriam morrer por um país que jamais os valorizou como seres humanos. Depois de fazer as pazes com a crítica contando a história real de um policial negro que ajudou a desmantelar um núcleo da Ku Klux Klan, no ótimo "Infiltrado na Klan", Spike Lee consolida sua boa fase, após anos amargando projetos aquém de seus talentos, e nos apresenta a "Destacamento Blood", filme que, semelhante a um de seus protagonistas, olha fundo nos olhos da América para cobrar um valor que ainda é devido ao seu povo, sobre os anos que ninguém devolverá, mas que precisam ser debitados. 

Em Destacamento Blood, Spike Lee conta a história de quatro veteranos de guerra afro-americanos que voltam ao Vietnã à procura dos restos mortais de seu comandante – e de um tesouro enterrado. Não existe melhor momento para este filme chegar ao grande público do que agora e Lee, que já é conhecido por colocar o dedo na ferida e sempre politizar seus filmes (por vezes com excesso), traz uma forte energia e ambição ao projeto, que é um dos mais urgentes e impactantes de sua carreira. O diretor constrói uma mistura de filme de guerra (e dos bons) aliado aos traumas psicológicos que os veteranos carregam, filmando as cenas com a qualidade que lhe é comum, aliado a uma montagem eficiente, que conecta passado e presente, realidade e delírio dando vigor e potência ao longa. Mantendo seu estilo ácido em toda a projeção, Lee ainda encontra espaço para usar suas famosas sequencias de monólogos do personagem olhando diretamente para a câmera, com uma poderosa crítica aos EUA e seus governantes perto do final do filme. O roteiro, escrito à oito mãos, explora a dubiedade e complexidade do ser humano, mostrando como o sistema racista manipula as pessoas de forma consciente e inconsciente. Apresentando idéias que ramificam para diversas direções, o texto tem momentos um tanto quanto mal elaborados, como o passado de Otis com a mulher vietnamita ou a importância que cada um do Destacamento tem para a história, sendo que apenas dois são bem desenvolvidos. Longe de criar personagens que sejam mocinhos ou vilões, o roteiro constrói no personagem Paul, o que o público menos espera de um protagonista: simpatizante de Trump, quebrado por um trauma do passado e repleto de contradições, Paul é a personificação de todo o ideal imperialista dos Estados Unidos, onde obcecado pelo ouro, acaba mostrando exatamente como o seu país construiu sua riqueza através de guerras. 

O longa tem uma bela fotografia, com uma iluminação que emprega paletas e granulações diferentes à cada segmento do filme, emulando à filmes como o grande clássico Apocalypse Now, o homenageando em pelo menos dois momentos do filme, porém com rosto próprio e personalidade suficiente para se sobressair de qualquer comparação. 

Em meio à um excesso de personagens e ao desnível de qualidade de desenvolvimento de cada um deles, Spike Lee tem em Delroy Lindo o intérprete perfeito para seu mais rico personagem, Paul. O ator rouba o filme todo para si com o papel de sua vida, entregando uma inesquecível interpretação onde possui os melhores diálogos e as cenas mais relevantes, como o monólogo já citado, que é um dos melhores momentos do filme.

Destacamento Blood chega em um momento mais do que apropriado, após a morte covarde de George Floyd por policiais brancos e da eterna injustiça com este povo que sofre de um mal que está entranhado de forma sistêmica na sociedade desde sempre. 

 

Curiosidades: A obra teria sido exibida numa sessão especial no Festival de Cannes 2020, evento que não ocorreu em função da pandemia do novo coronavírus.