Atenção, Coringa não é um filme de herói e nem de vilão. Durante suas intensas duas horas de duração, você presenciará uma obra hipnotizante (só fui piscar depois de uma hora de filme), um denso estudo de personagem que toca em todas as feridas da sociedade e que utiliza da violência, uma resposta a esta mesma sociedade opressora e sem empatia. Coringa vem sendo acusado, por diversos críticos e veículos de comunicação, de ser um filme que incita a violência, e de fato, qualquer estímulo pode atuar como um gatilho aquela pessoa que já está predisposta a cometer um ato de loucura. Porém, antes de acusar uma obra de ficção, que ao meu ver, em nenhum momento tenta justificar os atos de seu protagonista, tente compreender como é a criação destes monstros , desde a utilização de redes sociais, passando pela desigualdade social e pela crescente onda de ódio por pessoas que pensam diferente, seja por opção sexual, política ou religião. É mais fácil rotular este filme como um glorificação da violência do que enxergar como nós falhamos, todos os dias, em criar uma sociedade mais justa, mais amorosa e menos brutal.
No filme, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, toda semana, precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus conhecidos problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal à gozação de três homens em pleno metrô e os mata. Os assassinatos iniciam um movimento popular contra a elite de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é seu maior representante. Surpreendentemente, este filme é dirigido por Todd Phillips, mais conhecido pela franquia Se Beber Não case, e aqui ele pode considerar que entrou no hall de grandes diretores. Trazendo um controle absurdo sobre o material e a visão que queria abordar sobre o icônico personagem, o diretor mergulha na mente perturbada de seu protagonista, ao mesmo tempo que tenta inserir uma atmosfera política em seu filme, atacando o capitalismo e a desigualdade social, porém nunca tentando justificar os atos de Arthur Fleck. Phillips realiza uma obra tão visionária quanto insana e que funciona exatamente como seu protagonista, um tóxico agente do caos.
O roteiro, escrito pelo diretor em parceria com Scott Silver, é original ao trazer uma visão totalmente nova e perturbadora da origem de um personagem, que até então, desconhecíamos. O roteiro, que traz grandes referências a filmes como Taxi Driver e Rei da Comédia, registra a degradação da mente de uma pessoa com graves problemas neurológicos, apresentando em cada plano, a transformação de um homem doente e excluído pela sociedade até se tornar um criminoso. A parte técnica é impecável, com uma fotografia e direção de arte que cria uma Gotham City mais sombria, decadente, suja e mais claustrofóbica do que nunca, aliada a uma trilha sonora inquietante, que remete diretamente à insanidade psicológica que Arthur Fleck vai aos poucos mergulhando.
Porém, a alma de Coringa pertence a um homem que não erra e que prova, mais uma vez, que é o melhor ator de sua geração e em atividade. Em interpretação magnífica, Joaquin Phoenix (meu ator favorito) provoca espanto e admiração em doses cavalares com gargalhadas alucinantes misturadas a choro, que sempre terminam com um engasgo dolorido que são de arrepiar. Sua transformação física também é de se admirar (o ator perdeu 23 kg para o papel), com uma postura cada vez mais torta que reflete diretamente a seu estado mental. É uma atuação digna de Oscar.
Coringa é o filme que seu personagem principal gostaria de ver: é tóxico, visceral, insano e perturbador. Todd Phillips entrega uma obra impecável e um estudo de personagem provocativo em uma jornada de transformação até um estado psicológico digno de um supervilão, que encontra em Joaquin Phoenix seu interprete ideal.
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