“Em 2019, numa canetada, vou mandar 14 mil médicos de volta para Cuba. Quem sabe ocupando Guantânamo, que está sendo desativada para atender os petistas que vão para lá, tá ok?”.
O governo cubano não esperou o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) cumprir a promessa de campanha assumida em visita à Faculdade de Medicina da PUC de Campinas e anunciou a ruptura do contrato firmado com o governo brasileiro que garantia a atuação de médicos cubanos nas regiões mais desassistidas do país.
Deixando de lado o viés ideológico do assunto, o dado concreto é que, de uma hora para outra, cerca de 29 milhões de pessoas ficarão sem atendimento médico.
A polêmica envolvendo os médicos cubanos revela um problema que se arrasta sem solução desde que o Brasil é Brasil: a ausência de uma política de estado eficiente para a saúde preventiva. Ao mesmo tempo que existem 452,8 mil profissionais (segundo o Conselho Federal de Medicina no país), faltam médicos no serviço público.
O motivo do paradoxo é a baixa remuneração oferecida pelos governos federal, estaduais e municipais e a falta de outros incentivos para que atuem nas regiões mais distantes do país.
“Cabe ao governo – nos diferentes níveis de gestão – oferecer aos médicos brasileiros condições adequadas para atender a população, ou seja, infraestrutura de trabalho, apoio de equipe multidisciplinar, acesso a exames e a uma rede de referência para encaminhamento de casos mais graves”, diz nota do CFM. “Para estimular a fixação dos médicos brasileiros em áreas distantes e de difícil provimento, o governo deve prever a criação de uma carreira de Estado para o médico, com a obrigação dos gestores de oferecerem o suporte para sua atuação, assim como remuneração adequada”.
Por conta disso, faltam no serviço público especialistas como pediatras, cardiologistas, endocrinologistas e oftalmologistas, além de profissionais que se dediquem a programas de saúde preventiva e pronto atendimento. Cada vez mais, os jovens médicos buscam carreiras promissoras em clínicas particulares, em especialidades como cirurgia plástica.
Brasileiros não aderiram
Por conta da pressão de estados e municípios, a então presidenta Dilma Rousseff (PT) criou em 2013 o Mais Médicos, com o objetivo de contratar profissionais para atuar nos locais mais ermos do país. Mas apenas 11% das vagas foram preenchidas. O Ministério da Saúde então decidiu firmar um convênio com a Organização Pan Americana da Saúde (OPAS) para contratar médicos cubanos.
Uma das críticas feitas ao programa foi em relação ao fato de que, dos R$ 11.520 pagos para cada profissional, apenas R$ 3 mil eram repassados ao médico cubano — o restante ficava com o governo de Cuba.
Entre 2013 e 2017, o governo gastou R$ 7,1 bilhões no convênio com a OPAS, ou R$ 118 milhões por mês — quase metade do que foi gasto para pagar auxílio-moradia a membros do Poder Judiciário (R$ 3,12 bilhões), no mesmo período.
Hoje, os cubanos preenchem 8.332 das 18.240 vagas do programa, mais de 45% do total do Mais Médicos. Dos 5.570 municípios do país, 3.228 (79,5%) só têm médico pelo programa e 90% dos atendimentos da população indígena são feitos por profissionais de Cuba.
Outro problema foi que, segundo levantamento do Ministério da Transparência, as prefeituras atendidas pelo programa demitiram os médicos que já possuíam para ficar apenas com os profissionais do Mais Médicos, a pretexto de reduzir as próprias despesas.
Revalidados, cubanos disputariam mercado com brasileiros
Uma das críticas à atuação dos médicos cubanos é que eles não foram submetidos à prova que atesta a qualidade da sua formação acadêmica — o chamado Revalida. No entanto, caso estes profissionais estrangeiros conseguissem este certificado ficariam habilitados para atuar em qualquer parte do país (não apenas dentro do Mais Médicos), disputando mercado com os brasileiros.
Outros dados que estimulam a reflexão: o sistema de saúde preventiva cubano, concebido pelo guerrilheiro e médico Ernesto Che Guevara, é tido como modelo pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo sido indicado para o Prêmio Nobel da Paz em 2015. Atualmente, os médicos cubanos estão presentes em 62 países.
Muitas escolas e má formação
O Brasil possui 298 escolas de medicina que formam, a cada ano, cerca de 20 mil novos profissionais. Porém, cerca de metade dos recém-formados não consegue ser aprovada pelos conselhos regionais de medicina. Na prova de 2017 do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), por exemplo, 56,4% não obtiveram a nota mínima: 86% não sabiam atender corretamente vítimas de acidente de trânsito; 69% erraram como medir pressão arterial; 68% não sabiam como proceder no caso de um paciente com enfarte.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) defende uma moratória de cinco anos, impedindo a abertura de novos cursos no Brasil e o aumento da fiscalização da qualidade dos cursos já existentes. “O país está atravessando uma situação difícil”, resume o presidente do CFM, Carlos Vital.
Carreira de médico é proposta antiga
Durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro prometeu criar a carreira de médico de Estado, “para atender as áreas mais remotas do Brasil”. “E o salário vai ser mais que atrativo, tenho certeza. O dinheiro vai ficar no Brasil, e o pobre vai ter atendimento de qualidade, pois sabe que o médico é médico. Os cubanos que temos aqui ninguém sabe, na verdade, o que são”, disse.
Na verdade, a proposta não é novidade. Há quatro Projetos de Emenda Constitucional (PEC), que preveem a criação da carreira de médico de estado (454/2009, 34/2011, 115/2015 e 140/2015). Para se tornar realidade, precisam peregrinar pelas comissões da Câmara e do Senado e serem aprovadas em dois turnos por ao menos 308 deputados federais e 49 senadores. Mas a maior dificuldade é saber de onde sairão os recursos para pagar estes profissionais, num país que começará 2019 com a previsão de ter um déficit de R$ 139 bilhões.
O grande problema imediato é que a saída dos médicos cubanos deixará 29 milhões de pessoas sem atendimento. O Ministério da Saúde anunciou que vai lançar ainda este mês um edital para preencher as vagas, mas não há garantias de que brasileiros (ou mesmo estrangeiros de outros países) vão querer ocupá-las.
Um manifesto humanista
O trabalho desenvolvido pelos profissionais do Mais Médicos no locais mais afastados do país foi retratado pelo fotógrafo Araquém Alcântara, cujo resultado se vê no livro lançado no final de 2015, pela editora Brasilis. “É um manifesto humanista”, resume o fotógrafo, que em 2015 percorreu 38 cidades, de 19 estados.
Além de imagens, Araquém garimpou histórias, como a da médica cubana que descobriu que o foco de esquistossomose em Igreja Nova (Alagoas), era causado pelos canais de irrigação dos arrozais. Ou a do idoso de Manaus, vítima de hanseníase, que mesmo sem uma das pernas e com os dedos das mãos atrofiados, escrevia poemas para a médica cubana.
Araquém Alcântara é um dos mais consagradas fotógrafos brasileiros. É autor de 49 livros, muitos deles premiados, e já realizou exposições e palestras em diversos países.