
Quando a idade chega sorrateira é hora de entender que depois do tempo de plantar e de colher, vislumbra-se, a cada passo mais breve ou mais largo, o tempo de partir.
– Que idade é essa? – perguntou-me um velho alquebrado e trôpego – para o qual as distâncias já pareciam invencíveis.
– É a idade repleta e plena de muitos tempos idos – respondi-lhe. Mas ele, distraído de minha resposta, sorriu-me com ternura, antes de inclinar sua fronte e cerrar seus olhos, lentamente, adormecido sob o sol.
Mais tarde, segui adiante e superei a Cordilheira estendida bem abaixo das asas do meu vôo.
Ainda na antevéspera, os Andes se erguiam diante de mim, e eu percorri o corpo inchado das montanhas, por seus sulcos e rugas sinuosas, num pequeno carro estradeiro embaçado de pó, à procura dos cimos mais próximos do azul infinito por onde o condor passa navegando no vento.
Agora, toda aquela imensidão se apequenava e cabia na moldura da janela do avião.
Rapidamente, a Cordilheira ficou para trás, e surgiu uma inesgotável planície deserta.
Naquela antevéspera, quando encontrei o velho homem, eu era o rio inundando o Pacífico com as indomáveis torrentes de minhas emoções.
Quantos transbordamentos de minha preamar congesta de sangue. E quantos vazios e recuos dessas águas sentimentais fugidas das praias antes de retornarem e arremeterem, de repente, sobre mim mesmo, na tragédia de meus próprios tsunamis.
Tempo de plantar, tempo de colher, tempo de partir, quem sabe?
Em certo momento da vida os homens se descobrem antigos porque suas palavras soam longínquas para os moços carregados de tédio, frustrações e cansaços em suas mochilas infladas de vento.
Talvez o tempo de partir dos homens antigos coincida com o plantio infecundo de um mundo novo semeado pelas mãos de crianças precoces e adultos prematuros ensinados pela trágica experiência de tropeçar nos próprios pés, de errar sem volta, de pagar o gozo de uma vida agonizante com o preço do desperdício de seu sangue, de sua inteligência esterilizada, de sua sensibilidade atrofiada, e de seus sonhos abortados.
O tempo restante, de cada um, pode ser apenas o de uma noite de verão açoitada pela fúria de borrascas e tormentas. Ou o átimo de uma triste madrugada de inverno ao longo da qual a vida se esvai como o curso de um rio a passar em silêncio refletindo luzes enquanto arrasta, no fundo de seu leito, almas e sentimentos desfeitos adiante de suas margens sinuosas.
O tempo de alguém pode cumprir-se, enfim, no vão estreito de uma tarde de outono, e o rastro dessa vida extinta talvez desapareça sob uma multidão amarelecida de folhas mortas caídas e arrastadas pelos ventos.
Tudo passa, transparece e se esconde debaixo do sol.
Este homem antigo segue lentamente conduzindo saudades prontas para partir, e carregando em sua alma a lembrança do velho adormecido, em cujos lábios se imobilizou seu derradeiro sorriso como uma imagem dúbia de alegria e desencanto como o enigma de Gioconda impresso no rosto de cada criatura humana.
Naquele semblante do instante final, o homem antigo procurou em vão o segredo do momento seguinte. Mas o velho adormecido o reteve oculto entre a certeza da eternidade e a descrença do infinito.
Então, atento à sua própria voz, o homem antigo prossegue no percurso desse trecho de sua vida, do seu jeito, à sua maneira.
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