Opinião

Ele e eu

01/03/2025 Vicente Cassione
Ele e eu | Jornal da Orla

Já se passaram muitos anos daquela noite de dezembro, úmida e fria. Eu cumpria o extenso e monótono percurso entre o aeroporto e o centro de Londres, num vagão do subway, quase vazio.

Quando estou em um metrô, perco-me em meus pensamentos e todo o cenário, diante de mim, passa desapercebido. Mas, às vezes, adoto uma atitude contemplativa diante das pessoas postadas à minha frente e dedico uma especial atenção à expressão fisionômica de passageiros solitários.

Alguns mantém o rosto contraído, os lábios cerrados, uma cara de poucos amigos. Outros enfiam-se em livros e jornais e parecem fazer dos vagões uma sala móvel de leitura permanente, afinal não os vejo descer em nenhuma estação ao longo da viagem.

Há quem vagueie distraído, como se estivesse distante ou ausente, ao contrário de alguns observadores atentos; esses parecem adivinhar segredos e pensamentos de seus circunstantes.

Eu estava naquele vagão quando, em uma das estações, entrou um sujeito e ele sentou num banco lateral do lado oposto ao meu. Ficamos, então, um de frente para o outro.

Ele seria somente mais um passageiro a compor a imensa legião de desconhecidos com quem a gente cruza em breves momentos da vida, e nunca mais vê.

Mas não era.

Aquele indivíduo tinha, exatamente, a minha cara, de tal maneira que, se eu não estivesse ali, dentro de mim mesmo, bem poderia acreditar que ele era eu, diante de mim, olhando-me com os meus olhos.

Tivemos, ambos, imediatamente, uma inevitável surpresa, na mútua observação e não conseguimos dissimular o espanto recíproco.

Confesso-lhes, amáveis leitores, que aquele sujeito pareceu-me tragicamente antipático. Tinha um ar arrogante, a expressão severa e grave, um olhar bravio, e um jeito estranho de ser.

Talvez aquele homem tivesse em sua mente a mesma impressão a meu respeito, afinal ele era eu, sentado à sua frente, ou melhor, eu era ele, sentado diante de mim.

A partir da surpresa repentina, passamos a fingir uma indiferença mútua, como se nada houvesse de estranho no fato de duas pessoas, absolutamente iguais, entrarem no mesmo vagão de um subway, no mesmo dia, no mesmo instante, em algum lugar coincidente neste mundão de Deus.

Reprimi o impulso de lhe dizer que eu não sou o que ele supunha mas sim uma boa pessoa, um sentimental incorrigível e, antes de tudo, um tímido em constante vigília, e por sentir-me sempre acuado por meus circunstantes, vivo em estado de defesa permanente.

Eu não queria que ele partisse amargurado por ter de carregar consigo minha cara e meu corpo e então, pensei em lhe dizer que a má impressão causada por nós, um ao outro, devia-se, como sempre, aos julgamentos feitos com base nas aparências.

Senti pena daquele homem solitário, indo para algum lugar não adivinhado por mim, e para aonde, talvez, nem ele mesmo quisesse ir.
Pouco a pouco os olhares e sentimentos recíprocos começaram a mudar. Mas nada dissemos. Também, talvez pela mesma timidez, ele deve ter calado em seus lábios a mesma voz silente guardada dentro de mim.

Antes de ele descer, subitamente, numa estação qualquer, percebi que já nos dávamos bem e, apesar do silêncio e do brevíssimo encontro, já estávamos íntimos, quietos, mansos, confiáveis, como amigos leais, de uma antiga, grave, e honesta amizade.

Subitamente, quando ele desapareceu, além das vidraças do trem, senti a imensa tristeza de ser eu quem partia, abandonando-me ali, naquele vagão de um subway, para sempre. Sem uma palavra. Sem uma lágrima. Sem um adeus.