Gisela Monteiro *
Giselão. Nunca ninguém me chamou assim antes. É comum falarem Gisele e meus primos me provocam com apelidos que minha avó paterna me deu. Mas Giselão, nunca. Uma paciente passou a me chamar assim depois de um tempo de terapia. Não se dirigiu a mim, escreveu em uma mensagem pelo Whatsapp.
Alessandra tem uma história de vida daquelas inacreditáveis. Nascida nos anos 80 em uma cidade média na região do Brasil central, era a filha mais velha de seis irmãos. Os cinco depois dela nasceram de outro pai, quando a mãe ficou viúva e casou-se novamente. Ela já era adolescente. Teve uma vida duríssima, com padrasto alcoólatra e mãe diarista, tentando dar de comer para molecada. Abusos vários, ambiente familiar perigoso. Como irmã mais velha foi empurrada para trabalhar precocemente.
Alessandra tinha um talento pra vendas, vendia de tudo um pouco no bairro, em pequenas lojas, de forma avulsa ou contratada. Era muito bonita. Sempre conseguiu estar bem-vestida, com ou sem dinheiro. O padrasto era só violência. Um dia ela apaixonou-se pelo galã do bairro, um homem oito anos mais velho. Juntaram-se. Deu ruim em pouco tempo. Valentão e ciumento, arrumou uma briga na rua com três tipos que olhavam ostensivamente o corpo de sua mulher. Foi tirar satisfação e acabou esfaqueado. Depois dele, Alessandra nunca teve outro amor.
Com 20 e poucos anos voltou pra casa. Mesmos perrengues. Um dia seu padrasto deu uma bobeira e acabou preso por tráfico. Alessandra livrou-se apenas de parte da preocupação porque o resto da família também estava envolvida em atividades criminosas. Ela não gostava daquele lugar, achava que os irmãos não teriam futuro ali. Queria uma vida reta, fazer faculdade, ter trabalho decente.
Decidiu vir pra Baixada Santista com a mãe e trouxe quatro dos cinco irmãos mais novos. Com a pequena pensão da mãe e as vendas não conseguia sustentar a todos. Sua mãe ficou gravemente doente. Sem saída, passou a se prostituir em São Paulo. Foi uma escolha penosa, demorou até conseguir seu espaço para fazer dinheiro. Não queria correr o risco de ser vista e jamais contou sobre seu trabalho. A vida melhorou, a mãe estava sendo tratada por um plano de saúde que podia pagar, os irmãos estudavam e ela mesma passou a fazer faculdade.
Alessandra me conheceu em um dos cursos curtos em que às vezes dou aula. Era atenta e curiosa, sentava-se na primeira fileira e lembro que gostava de indicações de livros. Meses depois me procurou no consultório e me contou sua história. Àquela altura, estava sendo sustentada por um cliente que se tornara seu protetor. Ele era generoso e prestativo. Alessandra era muito grata porque conseguiu sair da rua e manter a todos sem correr riscos.
Nas sessões, as histórias trágicas se sucediam, relações abusivas e violentas, adultos incapazes de se cuidarem e se responsabilizarem pelas crianças, miséria, falta, desamparo e raiva. Culpava a mãe e tinha pena dela, queria desaparecer da vista da família, mas não conseguia. Inventavam justificativas para pedir dinheiro e Alessandra mandava. Sabia que estava sendo ludibriada, mas sentia-se no dever de ajudar por ter mais recursos que todos. E, de fato, tinha.
Em pouco tempo sua mãe morreu e Alessandra ficou com a guarda dos irmãos, dois meninos e duas meninas. Fazia um enorme esforço para que não seguissem o caminho do crime. Tentava ser disciplinadora, exigia bom desempenho escolar e envolvimento com as tarefas domésticas. O tempo passou e ela tornou-se insegura com seu protetor. Ele estava com mais idade. A cada telefonema dele achava que receberia uma notícia ruim. Como não queria voltar para prostituição, decidiu mudar de país um pouco antes da pandemia. Ela e quatro irmãos que, a essa altura eram adolescentes.
Quando Alessandra aventou essa possibilidade achei loucura. Como ela conseguiria ajeitar a documentação, sustentar cinco pessoas em outro país, arrumar emprego, apartamento e escola para todos? Teria que parar sua faculdade e interromper o sonho de se graduar. Fiz um enorme esforço para não exercer influência, mas deve ter ficado evidente no meu olhar um pedido para que pensasse bem. Pois ela foi embora com uma certeza admirável. Paramos a terapia neste período, quando ela estava se ajeitando no novo país. Tinha notícias esporádicas. Alessandra nunca saiu de meus pensamentos e preocupações. Morou em três cidades diferentes, depois de dois anos abriu a própria loja, os irmãos foram para escola e fizeram amigos. Durante a pandemia retomamos as sessões à distância.
É a pessoa mais forte que conheci. Na terapia, a realidade nunca era suavizada. Ela sabia que não podia contar com ninguém da família. Com o tempo, muitos estavam presos ou a caminha de serem. Primos traficantes e viciados, tendo filhos e os largando pelo mundo, sem perspectiva de uma vida ao menos razoável. Alessandra não se conformava. Passamos muito tempo conversando sobre como educar seus irmãos para um destino diferente, sem bater ou gritar que era o jeito que conhecia de mostrar autoridade. Fazia um enorme esforço para se conter, lia muito e lutava contra a convicção de que a genética familiar se sobreporia aos seus esforços educativos.
Como ela vivia de forma tão diferente das pessoas do lugar de onde veio, aguentava tanta dor, suportava o cotidiano sozinha e ainda cuidava de quatro irmãos? Tinha poucos amigos, nenhum amor ou vida sexual. Os anos nas ruas de São Paulo tiraram dela o interesse pelo sexo ou por uma nova relação amorosa. Dizia não sentir falta. Alessandra segurava a emoção nas sessões em que contava os detalhes duríssimos de sua história.
De um humor mordaz, se irritava demais com a curiosidade alheia. Na faculdade não faltavam colegas perguntando de sua vida. Bonita, elegante e inteligente, devia despertar inveja. Queixava-se de uma professora que se aproximava das alunas com melhor aparência para oferecer outros cursos e uma intimidade que Alessandra repudiava.
Quando ela me mandou a primeira mensagem me chamando de Giselão, meses do início da terapia, estranhei. Fiquei um pouco desconfortável, tentando entender se seria um sinal de aproximação. Percebi ali uma brecha de intimidade, uma marca pessoal. Com o tempo entendi que Alessandra só me chamava assim para me felicitar pelo aniversário ou quando estava bem-humorada. Obviamente há outros significados que eu, por incompetência nunca explorei. Passei a gostar de ouvir meu nome no aumentativo, mesmo sendo palavra de sonoridade feia.
Alessandra ficou um grande tempo sem me chamar de Giselão. Mudou mais uma vez de país, porque estava cansada do lugar onde se estabeleceu. Sentia-se estagnada. Lá foi ela de novo. Em poucos meses tinha trabalho, casa e escola para os dois irmãos mais novos. Os mais velhos já trabalhavam e não quiseram ir. Notei-a mais sofrida e desesperançada. Fazia esforço descomunal para manter o cotidiano.
Sugeri avaliação psiquiátrica para uma eventual medicação. A história de uso de drogas na família a fez muito refratária a qualquer química. Consegui consulta online rápida com colega que é excelente profissional e muito solidária. Acho que deu certo.
A dureza de Alessandra nunca significou insensibilidade. Sempre foi generosa e delicada. Incapaz de começar uma sessão sem perguntar como eu estava, ela demorou um tanto para voltar a me chamar de Giselão. Poder acompanhar o desenrolar da sua vida foi extraordinário e emocionante.
Tem pacientes para os quais eu deveria pagar para atender, não receber. Que profissão estranha essa que tenho…
* Gisela Monteiro é doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Santa Cecília (Unisanta)