Crônica

A morte, o poeta e o político

26/10/2024
A morte, o poeta e o político | Jornal da Orla

Gustavo Corção, engenheiro e escritor do século passado, tem uma definição muito boa para a crônica:

“Uma maneira leve de tratar as questões graves e uma maneira grave de tratar as coisas leves.”

Será que existe alguma coisa mais grave do que a morte? Será que existe uma maneira leve de tratar essa coisa tão grave?

Esta crônica vai tentar falar da morte de maneira leve.

Nestes últimos dez dias, dois personagens que invadiram a cena deste século se referiram à morte de maneira marcante: o poeta brasileiro Antônio Cícero e o líder político uruguaio Pepe Mujica.  

O poeta, num texto de despedida antes da morte assistida, disse que, ateu, se dava o direito de decidir se a continuação da vida vale a pena ou não. O político, num discurso também com tom de despedida, disse que está lutando contra a morte e a partida está no final.

Tanto um como outro deixaram marcas na vida pública do nosso tempo. Nas nossas vidas.

Antônio Cícero, como intelectual, escritor, poeta, chegou à Academia Brasileira de Letras. Tornou-se um “imortal”. Chegou a um Olimpo distante do nosso cotidiano. Mas como parceiro da irmã, a cantora  Marina Lima, se aproximou bastante das nossas vidas. É dele, por exemplo, um dos achados poéticos mais bonitos da música brasileira, o final do sucesso Fullgas;

“Você me abre seus braços / E a gente faz um país”.

Pepe Mujica tornou-se uma figura internacional carismática mesmo sendo  o Uruguai um país pequeno, com menos de 3,5 milhões de habitantes. Como líder de esquerda, passou 14 anos na prisão por ter lutado como guerrilheiro contra a ditadura. Depois da redemocratização, presidiu o país de 2010 a 2015. Ao contrário de outros líderes esquerdistas, não se deslumbrou com o poder, não se lambuzou nas mordomias. Continuou vivendo uma vida simples, sintonizada com a visão política que sempre pregou. Muita gente vê como demagogia. Mas na verdade trata-se só de uma coerência que surpreende porque é exceção. Sem o apego ao poder de Castro em Cuba e de Chávez e Maduro na Venezuela. Sem as roupas de grife e os vinhos requintados que estigmatizaram tantos líderes da esquerda mundial que chegaram ao poder, inclusive no Brasil. Longe da megalomania e da crueldade de Stalin e Kim Jong-un.

A simplicidade, para os antigos vedas, construía o caminho para a felicidade ao lado da sinceridade, da integridade e da afetividade. Não se achar mais do que ninguém.

Mujica, de 1935, aos 89 anos deixa esse legado de simplicidade.

No discurso em tom de despedida:

“Gracias a la vida. Sou um ancião caminhando para o lugar de onde não se volta.”

Ergue os braços:

Quando esses braços se forem, haverá milhares de braços lutando pelos mesmos sonhos”.

Antonio Cícero de, 1945, aos 79 anos, escolheu morrer com dignidade. Acometido pelo Alzheimer, se disse privado, pela perda da memória, da coisa mais importante da vida: a convivência com os amigos. Também não tinha mais concentração para ler, nem para escrever, as atividades de que mais gostava.

Duas figuras do nosso tempo, que nos oferecem para reflexão duas maneiras diferentes de encarar a morte.