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A herança de Dona Edith

23/03/2022
A herança de Dona Edith | Jornal da Orla

Na semana passada sofri muito com a partida da querida amiga, escritora e cidadã santista, Dona Edith Pires Gonçalves Dias, com quem convivia nas atividades culturais de Santos desde os anos 1970. Ela completaria 103 anos no próximo mês de julho (nascida em 1919) e foi uma pessoa marcante na história de nossa cidade, que amou tanto e revelou esse amor com uma memória espetacular, sobre fatos, datas e a importância desses momentos para a vida de todos nós.

Certa vez, a historiadora Emília Viotti da Costa disse que “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”. A professora Emília viveu de 1928 a 2017, e a sua frase repercute forte, sempre que buscamos referência para valorizar o testemunho das lutas e superação do passado, para compreender o presente e nos fortalecer mais para o futuro.

Dona Edith nos deixou como herança um legado que explica o acervo histórico e cultural de Santos, naquilo em que nos sentimos partícipes, tamanho envolvimento dos que fazem cultura na cidade e na região. Essa memória é física e ilustrada de fatos e coisas que precisam ter o nosso engajamento ao pertencimento e defesa, sem tréguas.

Paulistana, veio com a sua família para Santos com um ano de idade, foi moradora do casarão branco, que abriga a Pinacoteca Benedicto Calixto, na orla da praia do Boqueirão. E é preciso que se registre que esse patrimônio da cidade só permanece de pé por causa da sua luta, que se vitaminava com as suas recordações de infância e adolescência, até os seus primeiros 15 anos de existência.

Faz 10 anos e estivemos juntos na casa, que é tema de seu livro mais famoso, “Memórias do Casarão Branco” (publicado em 1999), em que pôs a energia fervorosa pela preservação do imóvel, até ser declarada de utilidade pública para fins de desapropriação pela Prefeitura, em 1979; e a decisão de sediar a Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, em 1986. O seu tombamento pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos – CONDEPASA ocorreu somente em 2012, por sua representatividade arquitetônica e por ser a última construção da época áurea do café.

Nessa visita ela fez questão de exibir o “quartinho de costuras”, de onde sua mãe vigiava os seus passos, pelos jardins do entorno e no acesso à praia. Seus olhos azuis brilhavam quando ela contava que o casarão pertenceu à sua família em duas oportunidades: a primeira, em 1911, quando seu pai Francisco da Costa Pires, português, exportador de café, o adquiriu e morou até 1913, e precisou vende-lo por motivos financeiros.

Construído por um industrial alemão em 1908, Dona Edith pode morar nele a partir de 1923, porque seu pai o readquiriu, em 1921, e precisou de dois anos para reformá-lo inteiramente, dando à casa a aparência e a forma atuais. De lá se mudou em 1936, quando a residência foi vendida; depois chegou a abrigar um pensionato para moças, foi residência de um comerciante espanhol até 1978 e, devido a um impasse, após o início do processo de desapropriação, fica abandonado e se torna um cortiço, abrigando cerca de 24 famílias.

Desse cenário, as lembranças de Dona Edith sempre descortinavam. E numa dessas histórias, a que guardava com maior carinho era a de que aos 3 anos de idade, quando sua mãe recebeu a visita do médico da família, o poeta José Martins Fontes, a quem chamavam de “doutor Zezinho”, e ele ficou impressionado com a intensidade dos olhos claros da menina e disse: __ Segure suas dores, minha querida, pois preciso fazer uns versos para os olhos azuis desta menina.

Dona Edith gravou Martins Fontes nas suas mais lindas lembranças, na década de 1920, e, desde então, mesclou os seus movimentos de dedicação a trabalhos filantrópicos, culturais e de cidadania em inúmeras entidades locais. Como, por exemplo, a Sociedade Espírita Anjo da Guarda, Clube das Soroptimistas Internacional de Santos, Associação das Famílias de Rotarianos, Clube dos 21 Irmãos Amigos, Clube XV, Movimento de Arregimentação Feminina – MAF, Sociedade Ítalo-Brasileira, Centro de Expansão Cultural, Banco de Olhos, Academia Feminina de Ciências, Letras e Artes, e Academia Santista de Letras.

Durante muitos anos foi a oradora oficial da cidade de Santos, nos eventos comemorativos do seu aniversário, em 26 de janeiro. Atuou como palestrante, principalmente sobre a vida e obra do médico e escritor santista Martins Fontes, e declamadora das suas poesias.

O falecimento de Dona Edith, no último dia 17 de março, me fez rebuscar na memória e nos meus guardados, nossos 45 anos de convivência. Também fomos confrades na Academia Santista de Letras, desde 2007, porque foi sua a iniciativa de me convidar para compor como membro da entidade, justamente na cadeira cujo patrono é Martins Fontes, que jamais esqueceu nesses 102 anos bem vividos, com memória e disposição invejáveis.

Relembrei que nos últimos anos ela saía pouco de seu apartamento no Embaré e, quando fui secretário de Cultura de Santos (2013-2014), tive a imensa honra de recebê-la juntamente com a diretoria da academia, ocasião em que pediu que não medisse esforços para apoiar a literatura local, principalmente os autores que a cidade deu luz e tem esquecido.

Dona Edith foi e continuará sendo um farol em defesa da memória do povo santista. Essa é a sua herança, o legado da defesa destemida de Santos. Dentre as nossas muitas conversas, Dona Edith me premiou com bilhetes pessoais, rascunhos e uma infinidade de informações sobre o seu Poeta Maior, que agora ela reencontra no universo: bora pensar em escrever sobre ele, o que certamente fará ainda maior a sua alegria.

Descanse em paz, Edith!

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