Ao mesmo tempo que provocou asco em muita gente, o episódio ocorrido no julgamento de um caso de estupro em Santa Catarina também evidenciou, mais uma vez, a existência do que especialistas em analisar a violência contra a mulher classificam como Cultura do Estupro.
Por ser algo tão tristemente familiar, boa parte da sociedade tem dificuldade em identificar a sua existência. Trata-se da negação de uma violência recorrente e, pior, de atribuir a culpa pelo crime à vítima. Quem já não ouviu “argumentos” que buscam colocar em dúvida o comportamento da mulher, culpar a roupa que ela usava, se estava embriagada, que “estava onde não devia”… em resumo, que “ela mereceu”.
Acusação não basta
Antes de qualquer coisa, é preciso deixar claro que não existe condenação por estupro baseada apenas em depoimento da vítima. Ao contrário. Quem acusa falsamente outra pessoa por crime sexual é processado por denunciação caluniosa.
Este comportamento até tem nome: Síndrome da Mulher de Potifar, uma alusão à passagem bíblica em que a esposa de um militar egípcio acusou José, filho de Jacó, de tentar estuprá-la, porque ele se recusou a ter relação sexual com ela.
Mas, diferente do que o senso comum julga, são poucos os casos deste tipo. Não é verdade, como circula pela internet, que 80% das denúncias de estupro são falsas comunicações. Esta informação surgiu em uma entrevista dada por uma psicóloga do Rio de Janeiro, em 2012, baseada numa percepção que ela tinha a respeito casos tramitando nas Varas de Família da capital fluminense —na luta pela guarda da criança em um processo de separação, a mulher inventaria a acusação para prejudicar o ex-marido.
Não há nenhuma estatística oficial que ateste isso. O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública traz diversas informações sobre todos os tipos de crime, mas nada que mensure esta denunciação caluniosa. Outros países possuem. Nos Estados Unidos, o índice de falsa comunicação fica entre 2% e 10% (dependendo do estado) e nos países europeus entre 5% e 8%.
Subnotificação
O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2020 indica que em 2019 foram 66.123 registros de estupro (um a cada 8 minutos). 80% das vítimas têm entre zero e 20 anos. Mas a tragédia é ainda maior. Especialistas estimam que 85% dos casos de violência sexual não são comunicados, pelos piores motivos: medo da vítima (do agressor ou de ninguém acreditar na denúncia), vergonha ou sentimento de culpa. Em 80% dos casos, o criminoso é alguém próximo da mulher (marido, amigo, colega de trabalho, vizinho, pai, padastro, tio, amigo da família).
Dificuldade de investigação
Por ser um crime em que é difícil reunir provas materiais, apenas 6% dos acusados de estupro vão a julgamento. Na grande maioria dos casos, fica impossível oferecer a denúncia. Entre as principais dificuldades, está a produção de laudos que confirmem a violência, como exames de corpo de delito, toxicológico (para apurar se a vítima estava embriagada ou foi dopada), perícia em vestimentas e no local do crime ou mesmo imagens de circuitos de monitoramento por vídeo.
O tal “estupro culposo”
O caso de Mariana Ferrer ganhou ainda mais notoriedade após reportagem do site The Intercept Brasil por duas razões principais. Primeiro, o comportamento deplorável dos participantes da audiência. O advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que ofendeu e humilhou a moça; o juiz, Rudson Marcos; e o promotor Thiago Carriço, por terem tolerado as barbaridades — Carriço se limitou a sugerir que a vítima tomasse um copo de água para “se acalmar”.
A segunda razão é a reportagem ter utilizado o termo “estupro culposo”, expressão que realmente não existe no Código Penal brasileiro. O site explicou que usou o termo para ser didático e explicar o que aconteceu ao público leigo.
A defesa alegou, e o promotor corroborou, a tese de que o réu, André de Camargo Aranha, “não tinha como saber que Mariana não estava em condições de consentir a relação”.
Faltaram provas materiais no processo. As imagens do circuito interno da boate sumiram, o exame toxicológico que poderia confirmar se a moça tinha sido dopada demorou três meses para ser feito e resultou inconclusivo — nem positivo nem negativo, para qualquer droga ou mesmo para o álcool que a moça afirma ter consumido na noite (e registado na sua comanda de consumo).
A cultura do estupro
Diversos especialistas em crimes contra a mulher alertam que o caso de Mariana é apenas mais uma demonstração da cultura do estupro, em que se busca desacreditar a vítima, atribuindo a ela comportamentos (roupa ou comportamento sensual, consumo de álcool) que levaram ao cometimento da violência sexual.
Pela cultura do estupro, uma mulher embriagada pode ser utilizada como objeto sexual. Esta “maneira de pensar” tolera que o homem “não tenha como saber” que uma mulher está sob efeito de álcool ou outra droga a ponto de não ter discernimento sobre os seus atos. É o que diz nota oficial do Ministério Público de Santa Catarina sobre o caso.
O que o cidadão de bem diria se seu filho chegasse em casa e relatasse que bebeu demais, ficou inconsciente e foi violentado?
“Ah! Mas é diferente…”. Então, é isso.