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Por pouco não aconteceu aqui

02/09/2017
Por pouco não aconteceu aqui | Jornal da Orla

Às margens plácidas do Ipiranga, D. Pedro I desembainha a espada e grita com vigor: “Independência ou Morte”. A cena da proclamação da autonomia política e administrativa do Brasil perante Portugal já foi retratada com a devida licença poética diversas vezes, desde o épico longa-metragem de 1972, que tinha Tarcísio Meira como protagonista, até a divertida novela vespertina “Novo Mundo”, que tem Caio Castro no papel principal — cena que será exibida na quinta-feira (7).

No entanto, em todas as representações, a importância da cidade de Santos fica relegada a um segundo plano: ela seria apenas o vilarejo litorâneo que o então príncipe regente visitou, quase que por acaso. Os principais registros históricos não evidenciam a participação de moradores da cidade neste processo (mais separatista do que de independência). 

Apesar de o início do porto organizado de Santos datar de 1892, a sua importância como corredor de movimentação de mercadorias vem desde a época em que o fundador da cidade, Braz Cubas, mandou construir trapiches. E aumentou ainda mais a partir de 1792, quando foi inaugurada um caminho ligando o porto ao planalto, a Calçada de Lorena, aberto pelo então governador Bernardo José Maria de Lorena. 

A economia local bombava, assim como o descontentamento dos locais com a Coroa Portuguesa, por conta dos altos impostos e os privilégios dados aos amigos do rei — situação familiar aos brasileiros dos dias de hoje.

Aliás, o surgimento de movimentos separatistas era comum naquela época: Revolta dos Beckman, no Maranhão; Guerra dos Emboabas, em Minas; Revolta dos Mascates, em Pernambuco, Conjuração, na Bahia; Inconfidência, em Minas Gerais). Nenhuma teve sucesso por terem sido fortemente reprimidos pelas forças da Coroa. 

A diferença foi a participação decisiva do santista José Bonifácio, que defendia a independência e a formação de um só país, para evitar o que vinha ocorrendo no resto da América Latina, onde o processo de emancipação da Espanha resultou na formação de diversas nações, unidas apenas pelo mesmo idioma.

 

Proclamação quase foi em Santos

D. Pedro I sempre foi simpático à Independência do Brasil. Afinal, havia chegado aqui, em 1808, aos 9 anos de idade e, portanto, vivido mais tempo no país tropical do que no Europeu. Mas a influência do santista José Bonifácio, seu principal conselheiro, foi fundamental.

D. Pedro já articulava o processo de independência desde janeiro, no chamado Dia do Fico, e as relações com a Coroa Portuguesa ficavam cada vez mais tensas. Assim, por recomendação de José Bonifácio, o príncipe regente veio para São Paulo abafar focos de apoio à manutenção do Brasil na condição de colônia. E veio a Santos, para inspecionar o sistema de defesa no litoral, caso Portugal resolvesse atacar após o anúncio da independência. 

Assim, em 5 de setembro, D. Pedro estava em São Paulo (onde conheceu Domilita de Castro Canto e Mello, a Marquesa de Santos, mas isso é outra história à parte) e veio para Santos. Desceu a serra no lombo de uma mula e chegou ao Porto Geral de Cubatão, onde pegou um barco para Santos. Circulou pela vila, que na época tinha pouco mais de 2 mil habitantes e, numa das vielas, se encantou com uma bela negra. Lascou-lhe um beijo, mas levou um sonoro tapa na cara. Depois,  vistoriou as instalações da Fortaleza da Barra Grande e ao Forte do Itapema. 

À noite, participou de um banquete na casa família de José Bonifácio, que ficava num imóvel na atual rua XV de Novembro (no terreno onde hoje, ao lado, está a Bolsa do Café). 

Na manhã seguinte, acordou passando mal, com o que chamavam na época de “fluxo de ventre” (diarreia). Mudou os planos e decidiu retornar para São Paulo imediatamente. Mas, diferente do clima épico retratado no quadro de Pedro Américo, presente em praticamente todos os livros didáticos, o príncipe regente não estava sobre um cavalo, nem era acompanhado por uma tropa da cavaleiros impecavelmente fardados. Era levado por um burrico, vestia uma espécie da camisola branca (que ficava cada vez menos branca e mais enlameada no trajeto), e estava acompanhado por um padre, soldados, alguns criados e seu assessor pessoal, Francisco Gomes da Silva, o Chalaça.

No Planalto, José Bonifácio havia despachado dois mensageiros —um deles, chamado Paulo Bregaro, é considerado o Patrono dos carteiros— com várias cartas. Entre elas, uma da Corte Portuguesa, que exigia o regresso imediato do príncipe e a prisão de José Bonifácio. Outras duas eram de sua esposa, Leopoldina, e de Bonifácio. “Vossa Alteza deve ficar e fazer a felicidade do povo brasileiro, que o deseja como seu soberano, sem ligações e obediências às despóticas Cortes portuguesas, que querem a escravidão do Brasil e a humilhação do seu adorado Príncipe Regente. Faça do Brasil um reino feliz, separado de Portugal”, escreveu Bonifácio.

Enfezado com a longa jornada, a crise de diarreia e as determinações de Portugal,  Pedro I jogou as cartas no chão, pisoteou-as e esbravejou: “As Cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de ‘rapazinho’ e de ‘brasileiro’. Pois verão agora quanto vale o ‘rapazinho’. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”, disse, conforme relato do padre Belchior Pinheiro, que integrava a comitiva.

Pelo depoimento do religioso, a cena épica descrita em filmes e novelas realmente ocorreu: D. Pedro arrancou as fitas que representavam o poder de Portugal do chapéu, desembainhou a espada e bradou: “Viva o Brasil livre e independente! Independência ou morte!”
 

Cidade teve o seu Tiradentes

O sentimento de separação do Brasil da Coroa Portuguesa em Santos era forte, a ponto de inspirar um soldado, Francisco das Chagas, o Chaguinhas, a comandar um levante militar. A situação dos militares brasileiros era o exemplo do grau de revolta: além de ganhar menos que os portugueses, recebiam sempre com atraso e eram constantemente humilhados.

Na noite de 27 de julho de 1821, os rebeldes dominaram o quartel e mataram vários militares portugueses, com o apoio de muitos moradores. O motim durou até 6 de julho, quando Chaguinhas e seus companheiros se renderam, diante da chegada de um forte aparato português, com muitos soldados e embarcações de guerra.

Chaguinhas disse que não queria sacrificar seus camaradas, diante da superioridade das forças portuguesas. Assumiu toda a responsabilidade pelo motim e justificou que o fez para vingar os brios brasileiros e lutar contra a tirania dos dominadores.

Levado para São Paulo, Chaguinhas foi condenado à morte e executado, em 20 de setembro de 1821. Mas não foi fácil. A corda de sua forca se rompeu três vezes antes de ele morrer -a população que presenciava a pena capital protestava, dizendo que era um "aviso divino", contrário à execução. 

Após o enforcamento, em praça pública, o corpo de Chaguinhas foi decapitado. A cabeça saiu rolando ladeira abaixo, até parar dentro da Capela Nossa Senhora dos Aflitos. Hoje, apesar de não ser canonizado, Chaguinha é considerado um santo popular daquela igreja, localizada no bairro da… Liberdade.
 

Fontes:

“História da Independência do Brasil”, de Pedro Calmon
“História do Brasil”, de Eduardo Bueno
"História de Santos/Poliantéia Santista", Francisco Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti 
“O caminho da Independência do Brasil”, de Antônio Sérgio Ribeiro