A negra alta, esbelta, bela e com tranças exuberantes entra no hotel sofisticado e fala que veio para a palestra. A atendente avisa, com certo tom de descaso: “A doutora ainda não chegou”.
Sem se abalar, responde: “EU sou palestrante!”
A situação, vivida pela mestre em Filosofia Política Djamila Ribeiro, expõe o que ela define como “crime perfeito”: o racismo no Brasil. “Ele é evidente, promove desigualdade e as pessoas negam que ele exista”.
Secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, ela vem se destacando na luta contra o racismo e a misoginia e, principalmente, quando os dois preconceitos se apresentam juntos. Nesta entrevista, Djamila, que mora em Santos, ajuda a se refletir sobre o assunto: somos racistas e não percebemos?
Na sua opinião, por que ainda há pessoas que acreditam não haver preconceito racial no Brasil?
Djamila– Ainda há resistência e desconhecimento sobre como nossa sociedade é racista por conta da dificuldade que as pessoas têm de entender a complexidade do racismo. O mito da democracia racial escamoteou essa compreensão. Nosso país foi o último do mundo a abolir a escravidão, no pós abolição não criou mecanismos de inclusão para essa população e os efeitos desse legado permanecem e são mantenedores de desigualdades. É necessário que as pessoas compreendam que racismo é um sistema de opressão que estrutura todas as relações sociais, para além de chamar que é só algo individual.
Há quem diga que existe preconceito social, não racial. O que acha?
Djamila- Se o preconceito fosse só social, atrizes como Taís Araújo, Sheron Menezes, não sofreriam ataques racistas como sofreram, assim como outras celebridades negras. A filha do ator Bruno Gagliasso vem sofrendo ataques racistas e é apenas uma criança! Basta ligarmos a televisão para percebemos o quanto o racismo existe. Quantas apresentadoras negras existem? Atrizes? Acho que é necessário sair do senso comum. Para além disso, existem diversas bibliografias, estudos sobre o tema. É necessário se aprofundar.
Qual sua opinião sobre a meritocracia? É possível, através do esforço pessoal, superar todas as barreiras e ter sucesso?
Djamila- Numa sociedade desigual não é possível falar em meritocracia. O que acontece é que pessoas privilegiadas possuem oportunidades para estarem em determinados espaços. Um jovem rico, que sempre estudou em ótimas escolas, viaja, fala outros idiomas, se passa numa universidade pública, não é por mérito e sim porque ele teve todas as condições para isso. Um jovem pobre não tem a mesma oportunidade. Claro que há pessoas pobres que conseguem acessar com muito esforço, mas só o fato de um conseguir com muito esforço e o outro com facilidade, já mostra que as oportunidades são desiguais. E não podemos nos pautar pela exceção. Um conseguir não significa que todos estarão nesse espaço. Precisamos pensar a partir daquilo que se configurou como regra e quebrar essa regra desigual.
O que você tem a dizer para quem acredita que o feminismo é bobagem?
Djamila– Quem diz isso não entendeu o que é feminismo. Num país em que a cada 5 minutos uma mulher é agredida, a cada 11, uma mulher é estuprada, onde mulheres brancas ganham 30% menos do que homens brancos e mulheres negras, 70%, o feminismo é essencial para lutar contra essas violências. Se você acredita que homens e mulheres devem ser tratados da mesma maneira, você é feminista. De novo: é necessário sair do senso comum.
Em que medida a mulher negra sofre mais do que a branca? A condição econômica e de ensino atenua um pouco isso?
Djamila- A mulher negra sofre mais por combinar duas opressões: racismo e machismo. É só buscar as pesquisas como o Mapa da Violência de 2015, que mostrou que aumentou em 55% o assassinato de mulheres negras nos últimos 10 anos. Existem pesquisas sérias que evidenciam essas desigualdades. Acredito que é muito importante sair do achismo. Eu posso achar que vermelho é mais bonito do que amarelo ou que sorvete de morango é mais gostoso do que o de chocolate. Isso não interfere em nada na vida das pessoas. Mas quando falamos de opressões e desigualdades não dá pra achar, o que existem são fatos sociais e querer achar alguma coisa no que tange oportunidades e vidas de sujeitos, é no mínimo leviano.
20 de novembro e 13 de maio são datas “só para falar que tem” ou são realmente importantes?
Djamila- As datas são importantes para relembrar a luta antirracista e todos aqueles que contrubuíram para uma sociedade onde a cor da pele não signifique exclusão.
Expressões familiares e racistas
Apesar de usadas com naturalidade pelos brasileiros, algumas expressões ocultam ideias racistas. Confira algumas:
Dia de branco- Para designar um dia de trabalho, algo próprio dos brancos, em contraste aos negros, que seriam “preguiçosos”, “vagabundos” e dispostos apenas para festejar.
Serviço de preto- Trabalho desleixado ou com defeito.
Coisa tá preta- Situação não está boa, nada agradável.
Denegrir- Atribuir características desabonadoras a alguém, que seriam típicas dos negros
Inveja branca- Inveja “positiva”, pois o que tudo o que é do branco seria “bom” e do negro, “ruim”.
Mulata- Um paralelo à mula (animal resultante do cruzamento do cavalo com o burro), para designar as pessoas resultantes da miscigenação entre brancos e negras. Além disso, a mula era o animal mais comumente usado para transportar cargas.
Cabelo ruim- Termo usado para designar pejorativamente o cabelo crespo.
Não sou tuas negas- Frase usada para reprimir um abuso, em alusão à época escravocrata, quando os senhores faziam o que bem entendiam com as escravas (castigos físicos, humilhações e estupros).
Com um pé na cozinha- Expressão para demonstrar que é descendente de negros, raça associada a trabalhos domésticos ou de menor importância.
Meia tigela- Durante o ciclo do ouro, os escravos só recebiam a porção de comida completa se conseguissem extrair a cota diárias exigida pelos feitores. Caso contrário, recebiam apenas a metade. Assim, “meia tigela” passou a designar os indivíduos incapazes de cumprir uma tarefa.
Mercado negro, magia negra, ovelha negra- termos usados pare designar algo negativo.
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