Comportamento

A barbárie da vez

09/05/2014Da Redação
A barbárie da vez | Jornal da Orla
A atrocidade cometida contra a dona de casa Fabiane Maria de Jesus no sábado (3), no bairro de Morrinhos, em Guarujá, reúne vários elementos de uma tragédia que vem se desenhando em um mundo de tecnológicas fantásticas e ignorância medieval. Como os tempos dos tribunais da Santa Inquisição, Fabiane foi acusada de bruxaria, torturada e morta por uma horda de “justiceiros” diante de uma plateia conivente. 
 
A ação resultou de boato lançado irresponsavelmente em rede social e imediatamente tornado verdade no mundo real – seja por leviandade, ignorância ou ingenuidade. O boato, mesmo quando veiculado pela Rádio Peão (boca a boca), sempre teve um poder destruidor, mas na internet dissemina-se a uma velocidade inigualável, ganhando formato ainda mais ameaçador. Os rumores circulam livremente e não há compromisso em checar e apurar os fatos. 

Portanto, assim como ocorria na Idade Média, qualquer um pode ser vítima. Basta alguém maldoso querer se vingar de outra pessoa, seja por desavença no trabalho, por ciúme ou inveja, e está instalado o ambiente para a tragédia. No caso de Guarujá, sequer havia registro policial de rapto de criança, crime atribuído pelos vingadores à pobre vítima. 

O assassinato de Fabiane teve requintes de extrema crueldade e soma-se a outros cometidos por supostos “justiceiros” somente este ano. Para quem a defende, a prática é uma resposta ao sentimento de insegurança que impera na sociedade e que a cada dia faz novas vítimas entre cidadãos de bem, mas a morte dessa jovem mãe, que deixou duas crianças órfãs, escancara o que o filósofo francês Michel Foucault, já em 1961, afirmava: que parte da vida social transcorre no campo da loucura. 

Assim como foi a morte do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Band, em manifestação dos Black Bloc no início do ano no Rio de Janeiro. Até então os atos de vandalismo, depredações, saques e destruição do patrimônio alheio vinham recebendo apoio nas redes sociais e até de personalidades públicas. Precisou um inocente morrer para calar as vozes que festejavam os adeptos da tática.

Rede de boatos e histeria coletiva

Há pouco tempo espalhou-se que o Governo Federal iria dar “bolsa-família” de mais de R$ 2 mil para prostitutas. O boato espalhou-se com a velocidade de um raio, as pessoas foram passando umas para as outras sem sequer acionar o botão mental do senso crítico. Mesmo quando o boato é solto em tom de ironia, encontra sempre incautos para passar para frente. 

Na semana passada, o humorista Renato Aragão veio a público negar ter pedido a demissão de um manobrista de um shopping, que teria atrasado a entrega do seu carro para tirar uma foto com ele. Aragão lamentou o boato, mas mesmo depois disso muita gente continuou compartilhando a informação e colocando em dúvida as palavras do artista.

Fabiane foi confundida com um retrato falado divulgado na página Guarujá Alerta, no Facebook. O tal retrato foi elaborado pela Polícia Civil do Rio em 2012 em inquérito sobre a tentativa de sequestro de um bebê. A imagem foi publicada no início de abril por uma usuária do Facebook e reaplicada milhares de vezes.

Segundo Gilmar Lopes, criador do site E-farsas, especializado em desmentir rumores on-line, os boatos têm padrões. Não são datados e possuem informações imprecisas, para serem usados em outras situações. No caso de Guarujá, o texto que acompanhava o retrato falado citava “uma sequestradora pela redondeza”, que teria capturado “mais ou menos 37 crianças para fazer magia negra”. 

Desde que surgiu a internet existem boatos, conhecidos como “hoaxes”. No início, as falsas histórias circulavam por e-mail, com o objetivo de capturar o máximo de endereços para o envio de spams. Nas redes sociais, são usados para gerar “curtidas” e aumentar o público das páginas ou instalar aplicativos maliciosos nos computadores.

A temerosa ação de justiceiros
No enterro de Fabiane, seu marido, o porteiro Jaílson Alves das Neves, se dirigiu não só às pessoas que a agrediram, mas também às que assistiram e não tiveram a coragem de salvar uma pessoa inocente. “Quero que eles reflitam e que isso não aconteça nunca com a família deles”, explica.

Para a socióloga Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, que estudou casos de linchamento ocorridos entre 1980 e 2009 na região metropolitana de São Paulo, não se trata de uma ação bárbara, irracional, mas de um crime cometido conscientemente pelos agressores. 

Segundo ela, há causas mais concretas do que a suposta omissão do Estado. Em suas pesquisas de três décadas, Ariadne constatou uma coincidência marcante: os linchamentos se repetem logo após um caso de grande repercussão na mídia. Portanto, comprova-se novamente, em relação aos crimes cometidos por uma coletividade, o que já foi demonstrado quanto aos suicídios – ou seja, que o noticiário intenso sobre um caso acaba deflagrando uma espécie de epidemia de eventos semelhantes.
“Cheguei à conclusão de que picos observados ao longo desses 30 anos na Grande São Paulo foram desencadeados por um caso de grande repercussão noticiado pela imprensa”, disse a socióloga.