
Escrever crônicas não é sempre a prática de um dom. Comumente é um hábito de pessoas esforçadas em revelar seus sentimentos por meio de textos cujo gênero literário estaria melhor guardado nas páginas de um diário íntimo; no meu caso, seguramente é um ofício, iniciado não sei desde quando. E sabe-se lá até quando vai isso.
Em verdade, nada escrevi de durável ou permanente. Teria sido mais útil se eu tivesse composto uma inesquecível marchinha de carnaval estruturada apenas num singelo refrão: mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar… Eis a literatura perpetuada na boca e na alma do povo.
No lado oposto, quem sabe ainda sobrevive alguém disposto a ler “Os Sertões” – esse leitor “é antes de tudo, um forte”, como o crestado e velho sertanejo; mas se esse improvável leitor existe, talvez seja alguém ruim da cabeça e doente do pé, que não gosta de samba e, portanto, bom sujeito não é.
Às vezes penso se valeu a pena minha teimosia em redigir textos nascidos de minhas emoções e sentimentos, às vezes plenos de rasas filosofias.
Numa tarde de primavera carioca, nos altos de um edifício, em uma cobertura ornada de árvores, flores e pássaros, moradia do imortal Ruben Braga, na Rua Barão da Torre, em Ipanema, estava ele deitado em sua rede e eu recostado numa cadeira de couro rústico, e ficamos ambos entretidos numa conversa de tarde inteira.
Durante o encontro, entreguei-lhe três ou quatro textos meus, para ele ler e dar-me uma sentença de morte ou de absolvição. Ruben dedicou-se à leitura mansamente, desde primeiro ao último texto. Então eu o ouvi: – “Você é um cronista, meu amigo”. Foram palavras ditas com doçura e um olhar paternal raramente desenhado em seu rosto de búlgaro bravio, como ele se definia para esconder o pleonástico lirismo de seu coração sentimental criador das mais belas, perfeitas e incomparáveis crônicas já escritas por alguém, como sentenciou, em dogma literário, Vinícius de Moraes sobre o “Bravo capitão Braga, o maior cronista do Brasil”.
Mas há uma marchinha de carnaval, dentre muitas, cujo sentido demorei-me a entender no início de minha infância, quando eu já ostentava uma estupidez precoce. Os versos do poema foram cantados pela voz do esquecido Jorge Veiga: “Por um carinho teu, minha cabrocha, eu vou até o Irajá; que me importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”.
Depois de descobrir há tempos onde fica Irajá, e apesar de décadas de desassossego, ainda não tive um grave motivo para visitar esse bairro do Rio. Mas guardo uma vaga impressão de que o compositor não esteve tão desejoso dos carinhos da tal cabrocha, a morena daquele bairro, afinal, o Irajá era logo ali, em contraste com os fins de mundo para aonde muitos amantes enternecidos ou tresloucados já se mandaram, em busca da mulher amada.
Descobri, também, um significado da palavra rosetar, qual seja, o de divertir-se, brincar, pagodear, folgar.
Notoriamente, não era o caso do nosso apaixonado pela cabrocha e para o qual as distâncias impunham li-mites a seus desejos de afa-gos e carinhos. No caso dele, adiante do não tão distante Irajá, tudo era longe.
Esse sujeito, não bastasse a limitação espacial para receber um carinho, revelou-se, também, um homem impiedoso e insensível, ao não se importar com a pobre mula manquitolando à custa de suas dores e cansaços por carregar esse bruto sob o peso de sua frieza e de seus pecados.
De minha parte, visivelmente cansado, vislumbro o sol do verão incendiando o País tropical, onde o ano todo é fevereiro e em se plantando, tudo dá, com adubo de samba, suor e cerveja.
Pairam nuvens carregadas de múltiplas crises em todos os espaços. Mas a ardência e os ardores do verão as dissipam, na ca- beça dos bem-aventurados pobres de espírito.
O resto são cinzas.
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