Opinião

O velho cadeirante e o sabiá

08/03/2025 Luiz Dias Guimarães
O velho cadeirante e o sabiá | Jornal da Orla

Há dias o sabiá surge para irritação do velho cadeirante. O sabiá tenta preparar um ninho no alto da coluna do terraço do bangalô de interior. Mas os pequenos gravetos despencam e o cadeirante varre os minúsculos cavacos para a grama com uma vassoura de cabo serrado ao meio que facilita a operação. Há uma silenciosa disputa entre o homem e o sabiá.

Intrigado, tenta entender melhor de quem se trata o visitante. Sabe que sabiá é nome tupi que significa ‘aquele que reza muito’. Mas será um sabiá-barranco, comum no Interior? Ou sabiá-poca de canto triste?.Pode ser também sabiá-coleira, de estrofes suaves e longas. O velho não consegue identificar pelo canto. O canto dos pássaros é tão ilusório como a fala dos homens e naquele lugar existem muitos sons de todas as espécies.

Então pode ser um sabiá-do-banhado, pensou. Pouco provável, apesar da cauda longa, vive mais nos pântanos. Sabiá-gongá pode ser, pois este faz ninhos em forma de taça com gravetos e gramíneas. Sabiá -do- campo faz ninhos com gravetos secos, algodão e grama, e é muito agressivo. Não é o caso. Apesar da irritação que provoca no homem, esse sabiá é manso e, quando no terraço, nem canta!

Considerando a região em que vive o homem, poderia ser um sabiá-laranjeira, mas o velho, apesar da dificuldade, consegue ver direito o tom no peito da ave. Não, decididamente não é laranjeira. Nem importa. Ele já se cansou de interpretar as espécies – dos pássaros e dos homens. Além do que de repente, apesar da aparência, nem é um sabiá.

É Inverno e setembro se aproxima. Todos os dias o homem vai ao terraço inúmeras vezes. O sabiá também. Setembro é um dos três meses em que o sabiá procria. E este se prepara no pequeno terraço com quatro colunas de tijolos aparentes que seguram o elegante telhado. Do terraço o homem controla o pé de ipê mirim que ele exibe com orgulho. Fica eufórico também quando surgem as maritacas na imensa praça da frente com palmeiras imperiais, siriguelas e outras árvores frutíferas.

Esse espaço é o mundo do homem cadeirante, vítima de pólio quando criança. E o miolo da praça é a sala de visita do bairro. Todos os dias, quando o sol começa a baixar, o homem se reúne com os vizinhos que invariavelmente disputam com as maritacas a atenção para contar proezas da última pescaria. Já não mais jovens, se mostram todos da mesma espécie.

Do terraço o homem vê o sol vermelho se por, para descanso do sabiá e desse inquieto senhor que não precisará varrer os gravetos nas próximas horas.

No dia seguinte certamente o sabiá voltará. Será macho ou fêmea? Difícil saber. Mas a ave por instinto tenta preparar um ninho para os rebentos que estão por vir. O sabiá não desiste. Nem o homem. Talvez eles até ficassem amigos, não fosse a sujeira que o pequeno animal provoca diariamente, há vários dias.

Por quanto tempo mais o sabiá tentará concluir o berço de seus pequenos? Será que os filhotes já estão chegando na forma de ovinhos? O homem tem muitas dúvidas. A única certeza são os pequenos gravetos trazidos no bico e depois despencados no chão.

Mas o sabiá continua juntando gravetos. O velho também. O sabiá não desiste. Seu instinto o faz passar dias preparando a chegada dos bebês. O homem, que também tenta arranjar seu ninho, passou dias esperando a chegada de sua filha amada que veio festejar seus vinte anos com o pai. Logo mais a jovem retornará ao litoral onde mora com a mãe. E talvez não haja tempo de testemunhar o nascimento dos pequenos rebentos.

O velho cadeirante então voltará à sua lenta e monótona rotina, cuidando do ipê mirim e ouvindo conversas de pescador. E o sabiá finalizará a casinha. Cansado e cheio de limitações, o velho não precisará se esforçar tanto quanto o sabiá. Não que não queira, mas porque não pode. Foi o tempo em que, apesar de tudo, trabalhava muito. O sabiá é jovem – seja lá de que espécie for, tem uma longa missão pela frente.
O velho cadeirante ficará se preparando para lidar com o futuro daquela pequena família e de sua filha, mesmo que distante. Depois dos ovinhos chocados, os pequeninos ganharão comidinhas, ficarão fortes e partirão para a praça onde o velho estará com os companheiros. E talvez até faça as pazes com o sabiá, como faz com as maritacas que não sujam seu terraço, nesse mundo de palmeiras, seriguelas e animados pescadores.

Crônica escrita em Águas da Prata, no inverno de 2022. Homenagem póstuma a meu irmão Renato Guimarães Jr, falecido há uma semana