Gisela V. Monteiro
Doutora em Psicologia analisa comportamento do anestesistas que violentou gestante na sala de parto
Ontem eu chorei assistindo o telejornal. Já tinha lido no twitter a notícia do médico que teria estuprado uma parturiente. Achei que fosse mais uma denúncia infundada pelo absurdo do fato. As imagens do ato em si e da prisão são chocantes, com a devida proporção.
Assim que ouvi a notícia toda, com um misto de incredulidade, indignação, raiva e pena das mulheres que foram atendidas por esse médico, me pus a pensar qual a história pessoal dele. Que tipo de pais o criaram? Conviveu com irmãos, avós, primos? Em que condição econômica cresceu? Teve acesso a arte, praticou esporte, curtiu amigos, sofreu de amores?
O que levaria um médico anestesista a cometer um estupro durante uma cesariana e a reagir com total tranquilidade à voz de prisão em flagrante? Penso que a resposta está no entrelaçamento de aspectos individuais e sociais.
Para perpetrar o crime é preciso um impulso sexual com fantasias de poder sobre o corpo da mulher e sobre a equipe de profissionais em uma combinação de misoginia e arrogância. A dose de provável ineditismo da cena configura um triplo gozo: pelo estupro, pela dissimulação e pela originalidade.
A ousadia se justifica pela enorme sensação de poder que o anestesista deve ter tido. Sua realização narcísica, na qual demonstra virilidade e esperteza para esconder a cena são mais importantes que a realidade. De que havia uma mulher dando à luz sob cuidados de médicos e enfermeiras em que não cabia a erotização e muito menos a concretização de fantasias sexuais.
Essas são suposições sobre o médico a partir do que pude ler. Sobre o contexto social, temos o bolsonarismo.
Talvez esse estupro não acontecesse se não estivéssemos convivendo há uns anos com um presidente que ganhou espaço representando valores conservadores de direita que até então não tinham voz representativa. As pessoas perderam o constrangimento de defender a violência como estratégia, um Deus egoísta como guia e a família como guardiã da integridade dos valores morais. Preferem arma ao livro, oração à educação e repressão à liberdade.
Sim, a liberdade que o bolsonarismo defende é a de que o indivíduo deve agir para seu interesse, desconsiderando sua comunidade. A liberdade na qual as ideiam circulam e as identificações de gênero fluem são perigosas!! Os brancos, ricos, heterossexuais e tementes a Deus já historicamente privilegiados sentem-se ainda mais protegidos.
Mas como o desejo inconsciente é por vezes mais forte, não faltam pastores corruptos e que frequentam prostíbulos, ministros exaltando nazismo, cidadãos de bem assassinos e a primeira família envolvida com rachadinha. Nesse ambiente é fácil imaginar que o médico estuprador se sentisse mais à vontade para correr o risco. Seria protegido pela estrutura da justiça que está parcialmente aparelhada e por bolsonaristas de plantão nas redes sociais.
O médico ouviu sua voz de prisão com cara de esfinge, de quem estava imaginando quantos seguidores ganharia nas redes sociais pelo seu ato original e corajoso! “Crime? Que crime? Só exerci minha liberdade…”
Gisela V. Monteiro é doutora em Psicologia Social e coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Santa Cecília (Unisanta)
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