Helen Mavichian
Brincando com a imaginação a criança exercita a habilidade de fazer suposições sobre o que os outros pensam ou sentem
Antes de pensar em comprar o primeiro tablet versão infantil para a sua criança de três anos, é fundamental ter consciência do quanto as brincadeiras de faz-de-conta são imprescindíveis para o desenvolvimento do ser humano. A brincadeira de faz-de-conta é a atividade principal e predominante na infância. Ser capaz de fazer uma coisa significar outra é uma das maiores realizações da criança pequena. Nesse tipo de brincadeira, a criança finge ser outra coisa ou cria um mundo de fantasia.
É através do brincar com a imaginação, onde um canudo de papelão vira um foguete na corrida com o amiguinho, ou travesseirinhos arremessados são uma guerra de nuvens entre irmãos, que a criança exercita a habilidade de fazer suposições precisas sobre o que os outros pensam ou sentem, ou que ajuda a prever o que farão. Essa habilidade está relacionada ao que a psicologia chama de Teoria da Mente (ToM). Adquirir essa habilidade é fundamental para nossa inserção social, para estabelecer, manter e ter êxito nas relações sociais.
O termo Teoria da Mente está relacionado com a metarrepresentação, isto é, a representação de estados mentais de fundamental importância para o desenvolvimento linguístico. Ela pode ser investigada por meio de tarefas de falsa-crença, que exigem a compreensão de situações nas quais se tem um problema que é visto sob diferentes perspectivas: a perspectiva do indivíduo que está enfrentando o problema, e a do espectador, que está vendo a situação de fora.
As tarefas de Teoria da Mente de primeira ordem exigem a compreensão de que “uma pessoa pensa algo”, enquanto as de segunda ordem exigem a compreensão de que “uma pessoa pensa que outra pessoa pensa algo”.
A relação da brincadeira de faz-de-conta com o desenvolvimento da Teoria da Mente de crianças pequenas também tem sido objeto de um número significativo de estudos. Pesquisadores observaram que crianças que brincam de faz-de-conta em suas casas, com mães e irmãos, apresentam uma melhor compreensão das falsas crenças.
O que aos olhos dos leigos parece ser um funcionamento de difícil compreensão, na psique das crianças com desenvolvimento típico, ocorre naturalmente entre os três e seis anos de idade. Contudo, as crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) podem desenvolver essa habilidade de forma mais lenta e distinta.
O TEA se caracteriza por prejuízos severos na interação social e na comunicação e por ausência de atividades imaginativas, substituídas por comportamentos repetitivos e estereotipados. Por isso, ao observarmos uma criança autista, temos a sensação de que ela vive ensimesmada. E de fato vive, ao não conseguir interagir com o outro. O que envolve a Teoria da Mente e a Linguagem.
Não por acaso, as principais dificuldades que indivíduos com TEA podem enfrentar devido ao desenvolvimento tardio da Teoria da Mente são a capacidade de entender sentimentos e pensamentos alheios, entender que os outros esperam que seu comportamento mude dependendo de onde ou com quem estão, prever o que as pessoas podem fazer em seguida, interpretar diversos gestos ou expressões faciais, entender como seu comportamento pode irritar terceiros, compreender regras sociais e por fim expressar as próprias emoções adequadamente.
A Teoria da Mente entende que as principais características autistas resultam da falha nas capacidades de metarrepresentação, tornando impossível a compreensão dos estados mentais alheios.
Pesquisadores nesse campo sustentam que pensamentos, emoções e intenções já são expressos e compreendidos nas condutas explícitas, permitindo a sintonia mútua que funda a sociabilidade humana. Desta forma, no caso do autismo, antes da instalação de prejuízos na metarrepresentação, haveria distúrbios precoces na dimensão sensório-motora, interferindo nos processos de intersubjetividade primária e secundária.
E como esse processo ocorreria em crianças autistas? Como seria possível identificar esse déficit? Nelas, o déficit na construção da Teoria da Mente apareceria na escassez de jogos de faz-de-conta e na dificuldade em usar e entender termos associados a estados mentais.
* Helen Mavichian é psicoterapeuta especializada em crianças e adolescentes e Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É graduada em Psicologia, com especialização em Psicopedagogia. Pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em neuropsicologia e avaliação de leitura e escrita.