Pesquisa que está sendo desenvolvida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) abre boas perspectivas no tratamento da dependência em cocaína e crack. Testada em ratos, a vacina Calixcoca demonstrou ser capaz de bloquear o efeito das substâncias ativas das drogas. Professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG, o pesquisador Frederico Garcia explica que os anticorpos produzidos pela Calixcoca impediram, por meio de uma molécula sintética, que a cocaína ultrapasse a barreira hematoencefálica dos pacientes, ou seja, ela não chega até o cérebro. Dessa forma, a droga “não aciona o circuito de recompensa” no cérebro.
“Acreditamos que, como nos modelos animais, em humanos esse efeito impeça a percepção dos efeitos da droga e, com isso, o paciente não reative o circuito cerebral que leva à compulsão pela droga”, explica Frederico Garcia. “A grande dificuldade do dependente são as recaídas, que acionam o recurso de compulsão”, completou.
Teste em humanos
Raíssa Lima, outra pesquisadora envolvida no desenvolvimento da vacina, revela que os testes demonstraram a segurança e eficácia da Colixcoca em animais roedores e não roedores, que são os primatas não-humanos. “O imunizante manteve os anticorpos em camundongos e macacos por até um ano”.
Agora, os cientistas da UFMG estão reunindo a documentação necessária para solicitar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorização de testar a vacina em humanos. O imunizante seria aplicado em grupos elegíveis, incluindo os dependentes químicos em fase de recuperação.
Combate à compulsão
Para Garcia um dos principais problemas é que não há nenhum medicamento específico no tratamento do vício da cocaína e crack. Na maior parte dos casos, são medicamentos utilizados para outras doenças, como antidepressivos, que tentam melhorar os sintomas de abstinência e a compulsão. Assim, a Calixcoca seria um grande avanço.
“O que mais prejudica o tratamento é a primeira recaída após um tratamento de abstinência, que parece ativar o circuito de recompensas e fazer com que o paciente volte a ter compulsões pela droga”, diz ele, acrescentando que a Calixcoca evita a primeira ativação, dando um tempo maior aos dependentes para a reabilitação.
Garcia alerta que a vacina Calixcoca não seria a única estratégia para combater a dependência, pois o tratamento deve estar associado a outras ações.
Frederico Garcia foi convidado para dar detalhes sobre sua pesquisa na CPI da Epidemia do Crack instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo.
A Calixcoca é uma das finalistas do Prêmio Euro de Inovação em Saúde – América Latina, da farmacêutica Eurofarma, que vai conceder 500 mil euros para o grande destaque desta edição.
O pesquisador acredita que a conquista do prêmio viabilizaria o prosseguimento dos estudos, que foram iniciados em 2015. Independentemente disso, a Prefeitura de São Paulo firmou uma parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e vai investir R$ 4 milhões para o desenvolvimento da Calixcoca.
Consumo recorde de cocaína
Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2022, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), existem cerca de 275 milhões de usuários de crack e cocaína em todo mundo — 26% a mais do que há dez anos. O documento estima que a produção mundial de cocaína, em 2020, foi de 1.982 toneladas. Ainda segundo a ONU, no Brasil, a cocaína e o crack respondem por 11% de todos os tratamentos de dependência.
Uso da vacina contra cocaína na gravidez
Durante os ensaios pré-clínicos, a equipe identificou outro possível cenário de uso: o período da gestação. Em roedoras grávidas, a vacina induziu a produção de alta quantidade de anticorpos e estes eram transmitidos para os bebês. Em caso de exposição à cocaína, “a vacina impediu a ação da droga sobre a placenta e o feto. Observamos menos complicações obstétricas, maior número de filhotes e maior peso do que as não vacinadas”, acrescenta Garcia.
Sem a vacina que atua como um tipo de profilaxia pré-exposição (PrEP), o risco de a gestante ter uma recaída e o bebê desenvolver inúmeros problemas de saúde associados ao consumo de drogas é alto. Hoje, ainda não existe nenhuma alternativa médica que previne transtornos mentais em bebês gerados por mães que enfrentam a dependência química.
Molécula inovadora
De acordo com Garcia, há pelo menos mais duas outras instituições desenvolvendo vacinas similares para o tratamento da dependência química – a John Cristal e a Georg Koob, ambas nos Estados Unidos. Os imunizantes, porém, não tiveram a mesma eficácia nas pesquisas com humanos, que se mostraram eficazes apenas para 25% dos pacientes, e atualmente, os pesquisadores americanos estão fazendo estudos com outra molécula.
E é justamente aí que está uma das inovações da Calixcoca. “A nossa molécula inova por ser uma plataforma não proteica, ou seja, uma molécula sintética. Isso, além de facilitar e baratear a produção, permite que a cadeia logística seja mais simples por não demandar cadeia fria”, afirma Garcia, que diz que já foi contatado por pesquisadores de outros países em busca de parcerias.
A plataforma utilizada pela vacina da UFMG também poderá ajudar no tratamento da dependência de outras drogas. “Já temos o projeto dessas vacinas para opioides e metanfetamina. Estamos na busca de recursos para podermos desenvolvê-las”, acrescenta.