
ENTREVISTA A MARCOS A. FERREIRA
Especialista em Direito Internacional e Relações Internacionais, o professor Gilberto Rodrigues analisa o cenário global, sacudido com a volta de Donald Trump ao poder e a ideia de fazer dos EUA um líder hegemônico. Para o professor, trata-se de um fenômeno mundial de ultradireita. Aos 58 anos, Gilberto Rodrigues, que foi docente da UniSantos (1998-2013), é professor da Universidade Federal do ABC, onde também coordena a Cátedra Sérgio Vieira de Melo, em conjunto com o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR). Ele concedeu entrevista exclusiva ao Jornal da Orla.
Na virada do século, falou-se de nova ordem mundial multipolar, em substituição à bipolaridade do pós-guerra. Trump volta e fala em nova ordem hegemônica. O que muda?
Pós Segunda Guerra (1939-1945), os EUA passaram a ser o principal jogador, mas era relativo, porque tinha a União Soviética, que foi um ator importante e deu vazão à chamada bipolaridade: o conflito Leste-Oeste, a chamada guerra fria. Havia um bloco importante com a União Soviética. Passamos a ter uma ordem mundial com princípios e normas estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Qual o principal fenômeno que passou a mudar o perfil dessa ordem, que tinha os EUA como hegemônico? A ONU começa com 51 países e vai evoluindo para ter cada vez mais membros que não são, necessariamente, alinhados com EUA ou União Soviética. Temos o chamado processo de descolonização: colônias britânicas, francesas, portuguesas que passam a ser independentes, com base no princípio da autodeterminação dos povos, um dos mais importantes da Carta da ONU. Do final da Segunda Guerra para cá, temos o fim da guerra fria (podemos considerar que terminou em novembro de 1989, com a queda do muro de Berlin, ou setembro de 1991, com o fim da União Soviética) e o colapso do bloco comunista, mas isso não significou que a Rússia deixou de ser potência. Hoje, na ONU temos 194 países, se considerarmos a Palestina, que não é membro pleno porque os EUA não permitiram. A grande maioria é de países em desenvolvimento.
A China passou a ser o grande jogador neste cenário?
A China emerge como o grande ator que, de maneira multidimensional, pode fazer frente aos EUA. A Rússia não tem mais essa capacidade de superpotência, mas a China tem, com algumas restrições do ponto de vista cultural, linguístico, que são limitadores que os EUA não têm.
O que muda com a volta do Trump ao poder?
A chegada do Trump não é um fenômeno isolado nos EUA. Estamos vendo um fenômeno de ascensão da ultradireita em vários países. Um fenômeno global com corte fascista e nazista – se a gente tomar o fascismo e o nazismo dos anos 1930 como referência, pode fazer um paralelo desses novos governos, tendo em vista o discurso e a narrativa muito próximos. Estão desenvolvendo uma narrativa que tem efeito perverso, desconstrutivo da ordem mundial. Houve uma construção internacional de um arcabouço jurídico (e moral) de princípios e normas para a proteção dos direitos humanos, que é resultado das lutas que se acumularam ao longo dos séculos. Com a ascensão desses governos fascistas, estamos vendo uma nova onda nacionalista. Temos o Trump, a primeira-ministra Meloni [Giorgia Meloni], da Itália, o Órban [Viktor Órban], da Hungria, e, na Índia, o primeiro-ministro [Narendra Modi] tem também matizes nacionalistas fortes.
O fato de não estar isolado fortalece o Trump?
Permite que ele possa operar no cenário internacional com algumas alianças dessa ultradireita que ainda não tem presença tão forte assim, em termos de exercício de poder. No caso do Trump, ele conseguiu vencer no voto, coisa que os Republicanos não conseguiam há bom tempo (venciam só no colégio eleitoral; ele venceu no voto e no colégio), conseguiu maioria na Câmara, no Senado e na Suprema Corte. Está atuando em um cenário doméstico majoritário. Ele está colocando em prática uma nova política que é desconstrutiva da ordem interna americana e da ordem internacional, que os EUA ajudaram a criar.
É o caso da saída da Organização Mundial da Saúde (OMS)?
Toda política externa americana pode ser analisada a partir do soft power e do hard power. O hard tem a ver com o uso da força militar e da força política com respaldo militar. O soft power tem a ver com a cultura, a língua, a ideia do sonho americano. O Trump está abrindo mão do soft e se baseando apenas no hard power, incluindo as sanções econômicas. Num primeiro momento, pode ter certa eficácia, porque ele está usando todo o poderio para emparedar os países, inclusive aliados, para o objetivo que ele quer.
Qual é o problema dessa estratégia?
Ela não se sustenta em médio e longo prazos, porque – a literatura das RI nos ajuda a entender – nenhuma potência consegue manter seu poderio sem a adesão voluntária, ainda que parcialmente. Nenhuma potência hegemônica consegue fazer com que os países se mantenham aliados apenas com o hard power. Esses efeitos, por exemplo, da sobretaxa, elevação de tarifa para produtos estrangeiros, incluindo aliados, como Canadá e México, ou demonstrações de força, como deslocamento de porta-aviões, isso tem custo muito elevado.
A ascensão da extrema direita não quebra as teorias, exigindo novos pontos de reflexão?
Sim. A gente tem a história das relações internacionais como um manancial de interpretações que podemos tirar, mas a história não se repete. Porém, pode ter elementos muito semelhantes na sua evolução que nos permitem fazer prospecção com base no que já vimos. O custo de manutenção da ordem internacional baseada apenas no hard power é muito elevado e pode gerar revoluções internas nos países onde a população não vai aceitar uma série de imposições, pensando em regimes democráticos. Não podemos deixar de considerar o papel que a China vai exercer. Já se vislumbra que as posições do Trump vão facilitar a ocupação maior da China em espaço onde não estava conseguindo entrar.
Fala-se sempre nos impactos econômicos, mas e as questões sociais? Quais os impactos das ações na América Latina, por exemplo?
Uma questão são as deportações que atingem parcela significativa da população latino-americana dentro dos EUA. Primeiro, têm um impacto interno nos EUA, porque essa promessa de campanha do Trump de fazer deportações massivas atende ao público eleitor dele, que é xenófobo e vê no imigrante um inimigo, dentro da lógica fascista e neonacionalista, mas vai ter efeitos perversos para a economia americana. Muitos desses imigrantes são a força de trabalho mais importante, principalmente nas cidades grandes, nos serviços básicos. Quando houver um apagão, porque essas pessoas não estão mais nesses trabalhos, elas não serão substituídas pela população branca americana. Esse é um efeito econômico que não se sabe como o Trump vai lidar. Falando da AL, se pegarmos a América Central – Guatemala, El Salvador, Honduras, por exemplo –, uma população grande desses países vive nos EUA e essas deportações vão fazer com que essas pessoas deixem de enviar remessas para suas famílias, no país de origem. Essas remessas constituem, para esses países menores, uma parte do PIB. Vai haver perda de receita grande. Do ponto de vista humanitário, as deportações estão violando princípios do Direito Internacional, seja porque são feitas de forma truculenta, violando o princípio da dignidade humana, seja por descumprimento de normas internacionais. Por exemplo, foram anunciados que serão deportados venezuelanos e o presidente Nicolás Maduro aceitou, mas muitas das pessoas são opositoras do regime. Então, elas são refugiadas e não poderiam ser deportadas. São pessoas que pediram asilo ou estão em condição de vulnerabilidade política. Isso pode gerar um problema sério, como prisões arbitrárias.
E com relação à USAID?
A USAID é o principal mecanismo de ajuda humanitária internacional, principal braço da política externa americana. Uma agência muito poderosa, com grande volume de recursos para a questão humanitária e que simplesmente foi congelada. Este desmonte da USAID vai ter um impacto grande em várias operações na AL. Se os países não assumirem parte dessas operações, muitas pessoas estão em altíssimo estado de vulnerabilidade. Por exemplo, os EUA deixaram de colocar dinheiro no programa mundial da Aids. No caso da Organização Internacional para Migrações (OIM), a suspensão de verba foi parcialmente revertida para alguns países, não para o Brasil. O governo brasileiro discutiu sobre a Operação Acolhida, que depende em grande medida da OIM, e decidiu cobrir um mês da operação, mais de R$ 5 milhões. Não se sabe o que vai acontecer.
Os organismos internacionais são bastante questionados. Qual a importância desses organismos e até que ponto a ONU está fragilizada?
O multilateralismo tem estado em crise, se quisermos dizer uma data, desde o 11 de setembro de 2001. A narrativa de que a ONU é ineficiente, muito custosa, é falaciosa porque a ONU não foi criada exatamente para atender os países ricos, mas sim os países em desenvolvimento. Muitas agências da ONU fazem um trabalho fundamental no campo da agricultura, da saúde, da educação – a Unesco, a OMS, a OIT, Acnur. Quando os EUA criticam, não é porque a ONU não faz bem-feito, mas porque os seus interesses não estão sendo bem atendidos, do ponto de vista da política internacional. A ordem internacional e a ONU foram concebidas com muita influência britânica e norte-americana, mas depois dos processos de descolonização, a ONU foi ganhando outros perfis. Claro que isso não satisfez os EUA e seus aliados. Houve perda de influência e, como os EUA detêm 25% do orçamento da ONU, a cota é grande, eles têm o poder de veto em muitas questões. Agora, a saída é seletiva. Os EUA não estão dizendo vamos sair da ONU. Estão saindo de algumas agências.
Por que sair da OMS?
Porque a OMS foi a grande promotora das vacinas no mundo, durante a pandemia, e o governo Trump é antivacina. Temos que ver se vão sair de outras organizações, ou querem que outros países aumentem suas cotas. A China, por exemplo, talvez vá aumentar sua cota, porque tem potencial para isso. Mas vai só aumentar? Qual influência vai ter? A ONU é esse palco. Agora, não há a menor dúvida de que ela está muito enfraquecida, mas sem ela, ficaria pior, principalmente para os países e populações mais vulneráveis.
E a questão palestina, com a população ameaçada, também, de limpeza étinica?
Importante destacar que, hoje, a Palestina, que envolve Gaza, Cisjordânia e Jerusalém, está amplamente respaldada pela comunidade internacional, devido às últimas votações na Assembleia Geral. Existe uma maioria qualificada de países que apoia a Palestina e a permanência dos palestinos em Gaza. Então, o governo americano, o governo de Israel e mais uma meia dúzia de países que são muito dependentes dos EUA votam a favor deles. Mas são minoria dentro da Assembleia Geral, então, do ponto de vista político quanto jurídico, existe um amplo respaldo para os palestinos, não só para permanecerem no território como também para exercerem sua soberania. O que o Trump está propondo está muito bem categorizado como crime contra a humanidade, que é o chamado deslocamento forçado de populações. Isso já foi feito pelo Netanyahu durante os ataques, quando ele determinou unilateralmente que a população saísse do norte para o sul de Gaza. A saída permanente é pior e não tem o menor respaldo do ponto de vista do Direito internacional. Eles sabem que isso vai dar problema, tanto que o ministro da Defesa de Israel propôs um plano de saída voluntária. Sabemos que isso é apenas um verniz, uma falácia, mas demonstra a preocupação para não caracterizar o deslocamento forçado. Além desse aspecto, existem evidências muito claras de que houve uma tentativa – e ainda segue – de limpeza étnica que configura crime contra a humanidade e de genocídio. Têm as ações na Corte Internacional de Justiça e no Tribunal Penal Internacional. Já houve uma manifestação de países árabes afirmando que são contra essa retirada. O povo palestino está amplamente respaldado pelo princípio da autodeterminação dos povos e pelas resoluções da própria ONU que, desde 1949, criaram o estado palestino e o israelense e definiram que os palestinos têm direito a um território e a exercer soberania sobre ele.
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