
O escritor, jornalista e crítico literário mineiro Sérgio Rodrigues é um refinado artesão das palavras, sempre em busca do melhor texto. Na adolescência, decidiu ser escritor e, a partir dessa escolha, muitas portas se abriram.
Desde os 17 anos mora no Rio de Janeiro, tendo se ausentado apenas por dois anos para atuar como correspondente do Jornal do Brasil em Londres. É autor de 12 livros e acaba de entregar mais um, sobre o ato de escrever, para a Companhia das Letras. Seu romance O drible (2013) venceu o Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) e ganhou uma edição especial de aniversário em 2023. Outro destaque de sua carreira é A Vida Futura, narrado pelo fantasma de Machado de Assis, seu autor favorito. Na literatura infantil, publicou o abecedário poético ABCXYZ, em parceria com o ilustrador Daniel Kondo. Tem livros editados na Espanha, nos EUA, na França e em Portugal e é colunista de língua e linguagem da Folha de S.Paulo.
Entre escritor, jornalista e crítico literário, com qual identidade você mais se identifica?
Com todas. Mas, pela ordem de entrada em cena, o escritor veio primeiro. Na adolescência, decidi que era isso que queria fazer. O jornalismo veio depois, como uma forma de dar um enquadramento mais realista à minha vida profissional. A literatura é um ofício, uma atividade que pode ocupar todo o seu tempo, mas não é exatamente uma profissão ou uma carreira. Percebi isso cedo e encontrei no jornalismo um caminho que me permitiu ter uma carreira, sem abrir mão do meu projeto literário. O jornalismo, por ser muito absorvente, acabou adiando minha estreia como escritor, embora eu nunca tenha deixado de escrever.
Quando você conseguiu publicar seu primeiro livro?
Houve um momento, no início da vida adulta, em que o jornalismo tomou todo o meu tempo. Por isso, só publiquei meu primeiro livro de ficção após os 30 anos. Aos poucos, fui me tornando cada vez mais escritor, buscando espaço para isso dentro da minha rotina, inclusive no próprio jornalismo. Apesar de serem atividades diferentes, ambas compartilham a linguagem escrita. Eu sempre trouxe a literatura para dentro do jornalismo, escrevendo sobre livros e o aprimoramento da linguagem. Sempre fui um repórter que se dedicava muito ao prazer de trabalhar o texto, talvez até mais do que o necessário.
Essa exigência sempre esteve presente na sua profissão?
Reescrever, aperfeiçoar, melhorar o texto, aprender a escrever era meu objetivo principal, e investi muito nisso. Estudar a língua é um processo diferente, embora tenha pontos em comum. Ter domínio gramatical pode ser uma diferença para um escritor, mas não é obrigatório. Muitos escritores fogem disso, acreditando que pode atrapalhar. Eu, por outro lado, sempre gostei de análise sintática e do estudo da língua. Isso me ajudou a compreender melhor as engrenagens do texto e a desenvolver minha escrita.
Como surgiu a ideia da sua coluna na Folha de S.Paulo?
Recebi um convite para escrever uma coluna semanal e quis encontrar um tema relevante. Achei que já havia colunas demais sobre temas genéricos. Inspirei-me na On Language, do William Safire, no New York Times, que abordava a relação entre língua e sociedade. Não queria uma coluna tradicional de professor de Português, mas algo com uma abordagem mais lúdica e acessível. Meu objetivo era tratar da língua como um fenômeno vivo, mostrando como ela evolui e está na vida de todos, faz parte da paisagem, para que as pessoas compreendessem como interagir com ela, umas com as outras e com o mundo.
E o resultado?
Logo percebi que precisava me aprofundar mais no tema, não dava para improvisar. A graça do texto ia ser parte da brincadeira, mas precisava ser mais. Minha coluna acabou se tornando uma forma de divulgação científica, traduzindo para o públicosaberes que estavam na universidade, mas que não chegavam às pessoas. A visão conservadora sobre a língua, focada apenas no certo e errado, ainda é predominante. Mas a língua é uma construção social em permanente transformação. Um erro de hoje pode ser a norma de amanhã. Minha coluna é mais jornalística e literária, busca trazer essas nuances para o leitor e subverte a questão do tempo, pode ter uma sobrevida maior.
Como você avalia o jornalismo atual?
O jornalismo está muito acelerado. A internet impõe um ritmo que nem sempre permite o capricho na apuração e na escrita. O jornalismo pode ser educativo, informativo e, ao mesmo tempo, entreter, mas precisa se reinventar. O jornalismo embora não esteja em uma fase boa, como potência de linguagem pode fazer mais. O modelo do “minuto a minuto” é cruel: publica-se qualquer coisa para sair na frente, e depois se verifica a veracidade. O espaço para reflexão e qualidade de texto diminuiu. Revisão, então, nem se fala.
Você é disciplinado ao escrever?
Nem um pouco. Sou responsável e cumpro prazos, mas não sigo uma rotina fixa. Muitas vezes deixo acumular e acabo virando a noite para entregar. No final, dá tudo certo.
Quantos livros já escreveu?
Já escrevi 12 livros, acabo de entregar o 13º, pela Companhia das Letras. É um livro de não ficção sobre escrever, uma tentativa de sistematizar umas ideias e uma vida inteira de aprendizado, de como eu aprendi e tentar passar isso adiante. Deve sair no meio do ano e me deixou muito feliz. O tema me obrigou a pensar retrospectivamente sobre a minha trajetória, mesmo. A única coisa que eu aprendi de verdade a fazer na vida foi escrever bem.
De onde vem a inspiração para escrever uma coluna semanal?
No início, ficava nervoso, achando o prazo curto demais. Com o tempo, relaxei e percebi que a coluna sempre sai no dia certo, não há possibilidade de não entregar. O jornalismo ensina a trabalhar sob pressão. Perguntei uma vez ao Luís Fernando Verissimo como ele conseguia escrever tantas colunas por semana. Ele respondeu: “O pânico ajuda muito”. Curiosamente, os textos escritos na última hora e de improviso muitas vezes saem melhores.
E você, leitor?
Desde a infância, sempre fui um leitor. Foi assim que tudo começou. Quis me tornar escritor porque lia muito. Quando eu tinha 12 anos, meu pai, funcionário do Banco do Brasil, passou a ser transferido de cidade em cidade. Isso me fez sentir desenraizado numa idade em que o grupo de amigos é fundamental. A cada dois anos, uma nova cidade, um novo começo. Foi uma fase solitária. Apesar de ter uma família grande, minha adolescência foi atípica, afastada do convívio social que poderia ser considerado “normal”. Foi nos livros que encontrei refúgio. Havia muitos em casa – meus pais eram leitores assíduos. Meu grande guru da época foi Erico Verissimo, cujas obras completas, publicadas pela Editora Globo de Porto Alegre em edições de capa dura, estavam na nossa estante. Li os bastidores de sua carreira, me apaixonei e percebi que era isso que eu queria fazer também.
Teve apoio dos seus pais?
No início, não contei para ninguém. Tinha 14 anos quando pedi para me matricularem em um curso de datilografia. Meu pai achou uma excelente ideia. Eu acreditava que um escritor precisava dominar a máquina de escrever. Só mais tarde descobri que a maioria dos escritores “catava milho”. Mas, na minha cabeça infantil, aquele era o primeiro passo. Tornei-me um excelente datilógrafo, e isso me ajudou muito.
E a escrita, como começou?
Comecei a me trancar no quarto e escrever contos. Eram os anos 70, o auge do conto no Brasil, especialmente entre os escritores mineiros. Como sou mineiro, achava que já tinha meio caminho andado. Passei a inscrever meus contos em concursos promovidos por academias e cidades do interior. Aos 16 anos, ganhei um deles. Essa validação externa me encorajou a sair do armário literário. Falei com meus pais. Eles ficaram orgulhosos, mas também preocupados com a incerteza da profissão – e não estavam errados.
Os prêmios ajudam?
Muito. Os pequenos prêmios que ganhei foram incentivos fundamentais. Aos 17 anos, mudei para o Rio de Janeiro. Até então, enquanto eu ficava trancado escrevendo, não havia ninguém na família que entendesse o que eu fazia. Escrever fugia dos padrões. Quando se está tão solitário, qualquer reconhecimento externo faz uma diferença enorme. Prêmios grandes, como o Portugal Telecom (hoje Oceanos), são importantes porque moldam a percepção do mercado e da crítica sobre o escritor. Quando se chega a esse nível, já não se trata mais de provar algo para si mesmo – você já sabe que é escritor. Mas é preciso que o mercado, os jornalistas e os críticos também reconheçam isso. Os prêmios funcionam como uma chancela, ainda que tenham um componente de loteria. Conheço livros brilhantes que nunca foram premiados. Não deveriam ter tanto peso, mas a verdade é que têm.
Você vê diferença entre conto e crônica?
Sim, embora em alguns casos as fronteiras sejam sutis. O conto permite coisas que a crônica não pode fazer. A crônica tem um compromisso com a leveza que o conto dispensa. Um conto pode ser hermético, árido, sombrio, difícil, até mesmo chato. A literatura tem esse poder de explorar territórios incômodos. Já a crônica, por ser publicada no jornal, precisa prender o leitor logo na primeira ou segunda linha. Se não fisgar de imediato, ele pula para outra coisa. Um conto pode demorar a engatar, explorar caminhos mais difíceis. A crônica é um jogo mais arriscado: precisa ser leve, parecer despretensiosa, mesmo quando trata de temas profundos como a morte. Muitas vezes, ela seduz o leitor com algo aparentemente banal, para depois arrastá-lo a águas mais profundas.
Um clássico para recomendar?
Mesmo sem ser uma escolha muito original, recomendo Dom Casmurro. Para mim, é o grande clássico brasileiro. Sou apaixonado por Machado de Assis e até escrevi um livro em que ele é personagem. Durante a escrita de A vida futura, no qual José de Alencar e Machado revivem no século XXI, mergulhei ainda mais na obra machadiana e saí ainda mais fascinado. Machado é nosso maior gênio literário, insuperável. O que o torna especial é que, a cada leitura, ele se redescobre. Muitos grandes escritores são delimitados por sua geração de leitores. Machado, não. Sua obra resiste ao tempo, sempre revelando novas camadas. Hoje, ele é orgulho nacional; no passado, já foi visto como traidor. Sua literatura traz indícios claros de sua aversão à escravidão. O conto Pai contra mãe, por exemplo, é uma denúncia brutal da herança maldita da escravidão no Brasil. Já Dom Casmurro é sua obra-prima absoluta. Recomendo ler e reler.
E uma obra de não ficção?
Recomendo O homem não existe (Editora Zahar), da crítica Ligia Gonçalves Diniz. Ela é o principal nome da nova crítica literária brasileira. Seu livro discute porque ainda vale a pena ler escritores canônicos, mesmo diante das críticas ao patriarcado. É uma leitura contemporânea, instigante, sem ranço acadêmico.
E um “livro do espanto”?
Escolher um só é difícil, há muita coisa espantosa. Mas vou recomendar um que estou relendo agora e que permanece fresco na memória: Léxico Familiar (Companhia das Letras), da grande escritora italiana Natalia Ginzburg. Uma verdadeira obra-prima.
Deixe um comentário