Significados do Judaísmo

Kol Nidrei, o Perfeito Começo de Yom Kippur

09/10/2024
Kol Nidrei, o Perfeito Começo de Yom Kippur | Jornal da Orla

Para a maioria dos judeus, Kol Nidrei é certamente a parte mais singular da liturgia, a que melhor representa o Yom Kippur.

Até aqueles judeus que se sentem incômodos com a liturgia judaica, comparecem às milhares sinagogas do mundo afora para ouvir esta oração poderosa.

Essa melodia contundente, frequentemente entoada pelo Chazan, e pela comunidade, em frente à arca aberta, faz com que todos os presentes acessem seus corações e almas, em busca de arrependimento e perdão.

Os mais religiosos vestidos, usando sapatos de borracha, com o kittel, a túnica branca que representa a pureza que esperamos alcançar através de nossas orações nestes dias sagrados, e as pessoas mais proeminentes segurando todos os rolos da Torá diante da sinagoga lotada, retratam a ênfase e a seriedade do momento.

Na verdade, a liturgia de Kol Nidrei tornou-se tão intensamente associada ao Yom Kippur que o serviço da véspera do Kippur é chamado de Kol Nidrei por quase toda a nossa comunidade judaica.

A frase Kol Nidrei vem do aramaico e significa muito mais do que sua tradução literal, “Todos os votos”.

Na verdade, não é uma oração, mas sim uma fórmula legal usada para a anulação dos votos.

Esses “votos”, de acordo com a Torá, referem-se a promessas solenes e obrigatórias feitas diante de Deus.

Estas são as primeiras palavras da fórmula legal especial que é recitada no início deste serviço e entoada três vezes.

Acredita-se que esse ritual legal tenha se desenvolvido no início da época medieval como resultado das perseguições contra os judeus.

Entretanto, em vários momentos da história judaica, os judeus foram forçados a se converter ao cristianismo ou ao islamismo sob pena de morte.

Na verdade, ninguém foi capaz de determinar exatamente onde e quando Kol Nidrei se originou e em que circunstâncias especiais, se houverem.

Não sabemos quem foi o autor, se a língua original era o hebraico ou o aramaico, nem exatamente quando foi introduzido na liturgia do Yom Kippur.

Existem muitas teorias – algumas tão dramáticas que beiram a fantasia – que tentam resolver os mistérios, mas nenhuma é conclusiva.

Um desses mistérios é por que o ritual para a dispensação dos votos deveria, em primeira instância, ser associado ao Dia da Expiação.

Na verdade, a passagem talmúdica que fornece a base legal para Kol Nidrei não fala de Yom Kippur, mas de Rosh HaShaná: “Aquele que deseja que nenhum de seus votos feitos durante o ano seja válido, que fique em pé no início do ano (Rosh HaShaná) e declare “’o mesmo voto (kol neder) que eu fizer no futuro será nulo.”

De acordo com o Zohar, ao recitar a anulação de votos Kol Nidrei no Dia do Perdão, estamos pedindo a Deus que nos favoreça, anulando quaisquer decretos – embora ditos permanentes – dos julgamentos negativos que nos aguardam, ainda que não mereçamos tal anulação.

Mesmo que não sendo formalmente uma oração, Kol Nidrei tornou-se o ritual mais consagrado do Yom Kippur.

Alivia a ansiedade, que é especialmente intensa na temporada dos Iamim HaNoraim, os Dez Dias de Arrependimento, por causa da possível violação da santidade das promessas.

Esta reza foi amplamente contestada no decorrer da história.

Por exemplo, no ano de 1242, Nicholas Donin, um judeu convertido ao cristianismo no início do século XIII, apresentou queixas e encabeçou a acusação culpando os judeus de usarem o texto “Kol Nidrei”, que permite ao devoto quebrar seus votos, para escapar de suas dívidas e assim explorar os gentios.

A resposta do defensor judeu foi que o piyyut, poema litúrgico, apenas pretende quebrar os votos feitos para Deus, e não desatar as obrigações materiais feitas a uma pessoa.

No entanto, o tribunal jurídico decidiu a favor de Nicholas Donin e o veredicto foi queimar todos os livros do Talmud, que simbolizavam a moral judaica defeituosa e o ódio pelos gentios.

Houve uma época em que se acreditava amplamente que o Kol Nidrei fora composto por “marranos” espanhóis, judeus que foram forçados a se converter ao cristianismo, mas que mantiveram secretamente sua fé original.

Esta ideia tem se mostrado incorreta, visto que a oração é anterior a esta era (por volta do século 15) em muitos séculos.

No entanto, esta oração foi de fato usada pelos marranos e é possível que seu grande significado e amplo uso derivem dessa perseguição.

Deve ser óbvio que a capacidade fenomenal de Kol Nidrei de resistir a tantas vicissitudes ao longo dos séculos não pode ser explicada somente em termos puramente racionais.

Temos que considerar outros fatores, o principal entre eles sendo a poderosa tradição popular que há muito associa Kol Nidrei com o martírio judaico.

O fato de que essa tradição profundamente enraizada não pode ser substanciada por evidências históricas firmes não atenuou em nada a aura mística com a qual envolveu uma fórmula legal.

Na realidade, até os diferentes níveis da recitação do Kol Nidrei na sinagoga nos prepara para nosso diálogo com Deus em Kippur.

A primeira vez, o Chazan deve pronunciá-lo muito brandamente, na segunda vez, ele já canta um pouco mais alto; e a terceira vez com voz plena.

À medida que entramos neste período de arrependimento e autorreflexão, que as palavras e melodias de nossos cultos das Grandes Festas levem a uma compreensão espiritual profunda de nossas vidas, nossos relacionamentos e nossas ações.

Devemos, cada um de nós, internalizar sempre que pudermos, viver este momento em comunidade, e buscar meios de vivenciar esta hora essencial do judaísmo.

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