Anfiteatro de Chautauqua, Estado de Nova York, agosto de 2022. Inicia-se uma palestra sobre a importância de garantir a segurança a escritores ameaçados. O palestrante – ele próprio alvo de uma sentença de morte proferida em 1989 por um Estado fundamentalista religioso – vê um jovem na plateia correr para o palco. O escritor leva 15 facadas, uma delas no olho. O decreto mortal quase se cumpre.
Salman Rushdie viveu por mais de 30 anos sob o pálio da ameaça de um atentado. Confrontado com sua própria sentença de morte, sofreu um ataque devastador e sobreviveu. Perdeu a visão de um olho e ainda luta para recuperar alguns movimentos, mas vive funcionalmente bem. Foi para tentar se apropriar do atentado, transformá-lo em algo seu e não do agressor, que Rushdie escreveu Faca: reflexões sobre um atentado. Um livro que o autor certamente preferiria nunca ter escrito.
Entretanto, um livro absolutamente brilhante. Repleto de reflexões interessantes, agradará qualquer leitor, mesmo aqueles que (ainda) não conhecem obra alguma de Rushdie.
Motivos para ler:
1- Esta coluna já abordou outros livros de Salman Rushdie: Os versos satânicos e Cidade da vitória. O primeiro, publicado em 1988, foi o motivo da fatwa lançada por aiatolá Khomeini, na qual pediu a morte do escritor por supostamente ter insultado o fundador da religião islâmica no romance;
2- As reflexões expostas no livro evidenciam o já conhecido e premiado talento de Rushdie: todos os sinistros detalhes, a recuperação física e psicológica, o terror e a esperança. Fluxos de pensamentos circulam o terrível episódio para lhe dar forma e conteúdo com uma qualidade literária magistral. Encontramos, ainda, uma grata surpresa: uma bem-humorada referência ao Memórias póstumas de Brás Cubas de nosso Machado de Assis;
3- O atentado contra Rushdie escancara um mal de nosso tempo: o extremismo. Fundamentalistas político-religiosos (Política e Religião sempre formaram uma infeliz equação) têm imensa dificuldade em aceitar outra visão de mundo que não a deles. Às vezes essa intolerância produz uma violência brutal. Outras vezes só expõe um imenso ridículo, a exemplo da “nota de repúdio” que alguns infelizes lançaram contra o show da Madonna no Rio ou o episódio da criminosa insinuação de que a tragédia do Rio Grande teria sido causada por “ira divina” contra práticas de macumba. Fica a pergunta, que também é um paradoxo: devemos tolerar os intolerantes? A grande virtude da democracia continua sendo, sem dúvida, também a sua maior fraqueza.
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