O ofício da escrita pode se prestar a vários propósitos. Há escritores que se encastelam em Torres de Marfim e escrevem para si mesmos. Alguns escrevem para desassossegar, provocando o espírito do leitor. Outros buscam a intervenção social. Nastassja Martin escreveu Escute as feras como forma de redenção após um trauma impressionante: ela sobreviveu a um ataque de um urso siberiano. A estória extraordinária aliada ao peculiar talento narrativo de Martin fez deste pequeno livro um merecido sucesso mundial.
Nastassja, antropóloga francesa, elaborava uma pesquisa de campo na Sibéria (2015), quando a fronteira entre o mundo civilizado e o selvagem implodiu bem na sua frente: ossos e peles dilacerados, rosto desfigurado, a perda da identidade física e psíquica. A vida que, após esse encontro, se dividiu em antes e depois. O livro se abre com o momento pós-ataque e prossegue numa riquíssima narrativa que combina a crueza do corpo em sofrimento com os fluxos de pensamentos altamente elevados da antropóloga.
Martin, após o encontro, tornou-se o que a cultura siberiana denomina “miêdka”: aquela que foi marcada pelo urso. Uma maldição. Para o bem e para o mal, viverá sob o véu da quase morte que se converteu em vida, com as garras do urso para sempre cravadas no coração.
Motivos para ler:
1- Nastassja Martin doutorou-se em antropologia e, a partir daí, lançou-se ao mundo em pesquisas de campo. Academicamente consagrada, considera que sua escolha profissional preparou o território para o inevitável encontro com o urso – o seu urso. O livro recebeu o considerado prêmio François Sommer por iluminar as relações entre o homem e a natureza;
2- A originalidade é o fator mais difícil de encontrar no mundo de hoje; afinal, de tudo já se fez debaixo do céu. Escute as feras é, sem dúvida, algo de novo sob o sol. Só por isso já vale a pena;
3- O melhor do livro é a comunhão entre a narrativa sobre um corpo danificado e os densos fluxos de consciência da autora. Nastassja resolveu seu encontro com o urso sob as cores do animismo, conceito antropológico que explica o diálogo simbiótico perene entre tudo o que existe no mundo (“o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências”). É inteligente, comovente, profundo e nunca resvala em lugares-comuns. Livro belíssimo.
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