Cena

Escritora carioca lança livro em Santos

14/02/2025 Isabela Marangoni
Maria Clara Dias Gloss

“Mariana só tem memórias do que não viveu”. Com uma premissa contraditória, a obra “Futuro do Pretérito”, de Lilian Dias, acompanha a jornada de uma mulher sem passado que descobre a si mesma a partir de fragmentos do presente.

Prestes a iniciar a turnê de lançamento em Santos, a escritora falou em entrevista exclusiva ao Jornal da Orla sobre o enredo, além da expectativa para a divulgação na cidade hoje (14), a partir das 18h, em um lugar tão marcante como a Realejo Livros.

De onde surgiu a ideia para o enredo do livro? Como o paradoxo “lembra memórias que não viveu” guia a narrativa?

A ideia do enredo surgiu de algumas rupturas que ocorreram na minha vida, tanto no plano pessoal, das memórias individuais, quanto no plano da memória coletiva. O livro foi escrito em 2023. Nos últimos anos, eu tinha sofrido, no plano pessoal, a perda sucessiva de amigos e parentes muito próximos. Encarar a morte de pessoas que fizeram parte da sua vida é uma experiência, além de duríssima, muito estranha no plano do autoconhecimento. A sensação de que muito daquilo que nós somos também morre com os que partiram é absolutamente real e mexe com as nossas memórias individuais como um vendaval. O processo não é manso nem pacífico. Para completar, no plano da memória coletiva, sou uma pessoa que nasceu durante a ditadura militar e que, nos anos 1980, quando me constituía como adulta, sonhei com a construção de um Brasil progressista, solidário, como sempre julguei que fosse nossa vocação. E, no entanto, particularmente a partir de 2018, vimos emergir um Brasil totalmente contrário aos valores daquela época, o que não chegava a ser novidade. No entanto, a narrativa sistemática que foi-se criando para negar a nossa história recente foi estarrecedora, intolerável. Negar nossa memória coletiva é negar, em última instância, quem nós somos como indivíduos. O enredo do livro, então, vem como um resgate de tudo isso. Uma necessidade de falar sobre memórias. O paradoxo “lembrar de memórias daquilo que não viveu” tem a ver com o processo de construção do futuro. No caso da protagonista, é sua única possibilidade de vislumbrar um futuro.

Como foi construir essa narrativa fragmentada não-linear do livro?

Essa é uma forma com que gosto muito de trabalhar. Construir uma narrativa fragmentada é semelhante ao processo de quando você conhece alguém, um novo amigo, e vai se apresentando aos poucos. O outro, então, vai percebendo que aquela pessoa de quem está diante é uma construção fragmentada de muitas vivências, e que uma puxa a outra, não necessariamente de forma linear. Nossa memória não é cronológica; podemos contá-la de forma cronológica, mas isso exige um esforço de racionalidade que não nos é natural. É claro que quando precisamos nos expressar literariamente, esse processo se torna um desafio, na medida em que o leitor não pode perder o nexo da narrativa, sob pena de ele se desinteressar pela história quando não é capaz de compreendê-la. Mas é um bom desafio, gosto muito de trabalhar com ele.

A memória individual e coletiva é um tema bastante presente em suas obras. O que te intriga nesse assunto?

Essencialmente o fato de que essas duas memórias são inseparáveis. A construção da memória coletiva exige a concorrência de uma miríade de memórias individuais. Por outro lado, nossa memória individual, aquilo que nós somos (o que julgamos que somos) está plantado na memória coletiva como uma árvore numa floresta. Todas se comunicam. Olhar para o outro, nessa floresta, é também olhar para si mesmo.

Seu livro se passa nos anos 80. Por que escolheu esse recorte temporal e qual a ligação com a história de mariana?

Basicamente, é a história do meu tempo, da década em que se iniciou o processo de construção da minha realidade individual e coletiva. O livro faz referência ao final dos anos 60, em que nasci, e aos anos 70, no qual fui criança. Mas o peso da narrativa está justamente nos anos 80, essa década de transição, tanto para mim quanto para o Brasil. A história de Mariana está inserida nesse contexto, na medida em que ela se tornou meu instrumento de resgate da memória desse tempo.

Quanto da sua experiência no mundo literário influenciou na construção dos personagens? Tem algum deles que você se identifica mais?

É impossível negar que minha vivência no mundo literário tem total influência na construção dos meus personagens. Sou uma pessoa de livros, trabalhei com eles a vida inteira, leio livros o tempo todo. Mas meus personagens têm vidas próprias que me deixam admirada – e muito! É como se fossem meus amigos mais íntimos. Encaro suas contradições, suas decisões tantas vezes duvidosas, com o coração mais aberto que uma pessoa pode ter diante de outra. Escrever torna-se, então, um exercício maravilhoso de compreensão e de tolerância com o outro. Por isso, posso dizer que, de alguma forma, me identifico com todos os meus personagens.

Você tem uma trajetória ligada a sebos, restauração e pesquisa de obras raras. Como essa vivência influenciou sua escrita, principalmente nesse livro?

Sim, a maior parte da minha vida adulta esteve ligada a uma ou várias dessas atividades. Não é possível dissociar essa vivência da minha escrita, embora às vezes eu me esforce um pouco para isso. Mas, no final, ele sempre surge, o personagem livreiro, que é o ser humano mais amigo dos livros que pode existir. Porque ele precisa cuidar, proteger e compreender os livros para melhor direcioná-los dentro desses grandes orfanatos literários que são os sebos. No Futuro do Pretérito, o livreiro surge na figura de Joel, talvez o personagem mais generoso e, ao mesmo tempo, mais brasileiro que algum dia fui capaz de criar.

Além de “Futuro do Pretérito”, tem outros projetos em andamento? Podemos esperar novos romances ou contos para esse ano?

Sim, tenho um projeto em andamento de publicar um conto longo, já finalizado, que está em fase de elaboração do design gráfico, uma vez que desejo que ele seja publicado com ilustrações. Pessoalmente, esta foi uma experiência bem diferente de escrita, na qual aprofundei a prosa poética de uma forma que ainda não tinha conseguido realizar. Acho que o resultado, com as ilustrações, vai ficar bem bonito. Além disso, tenho um livro de contos inédito, que ainda estou decidindo a forma como virá ao mundo, e desejo reeditar meus dois primeiros romances que, por enquanto, só existem em formato de e-book.

Por que escolheu santos para ser a primeira cidade da turnê de lançamento? Como está a expectativa para o lançamento aqui?

Santos é uma cidade em que tenho alguns amigos queridos e que teve grande relevância na construção do enredo do Futuro do Pretérito. O protagonista, que insere na trama a questão da militância ambiental, nasceu em Santos, teve ali sua infância e sua formação enquanto indivíduo e como ser coletivo. Santos é uma cidade que, por conta de sua história portuária, tem forte tradição no movimento operário, por isso se tornou o cenário ideal para pautar as ações deste personagem no mundo. Minha expectativa, sinceramente, é apenas a de reunir as pessoas queridas e desfrutar desse momento em que percebo que o livro tem tido tão generosa acolhida.

O evento será na realejo livros, uma livraria com forte tradição cultural. Como é para você lançar futuro do pretérito em um espaço tão ligado ao universo literário?

Desde que surgiu a ideia de fazer uma noite de autógrafos em Santos, ficou claro que o evento deveria acontecer nesta livraria. Se eu não tivesse conseguido uma data, provavelmente esse encontro não aconteceria. Não sou uma escritora que tenha grandes ambições comerciais com meus livros. Eles nasceram para estar no mundo, na companhia dos amigos que eles consigam fazer por aí. Então, o espaço da livraria é fundamental para esse estar no mundo. O primeiro lançamento, feito na minha cidade, Rio de Janeiro, também foi feito num espaço escolhido com cuidado.

O que o público pode esperar pelo evento de lançamento aqui? 

Basicamente, sessão de autógrafos. O bate-papo é uma consequência natural, não será um evento. Hoje em dia, sou muito conversadeira – uma conquista recente da minha personalidade que sempre foi mais introvertida. Agora, quando me pego num bate-papo, perco a hora de parar.

Para quem ainda não conhece sua obra, por que “Futuro do Pretérito” é uma leitura que vale a pena?

Sim. Nenhuma obra é para todos os gostos, mas tenho recebido algumas manifestações de afeto e alegria com relação à história, vindas de pessoas com visões de mundo muito diferentes, o que me faz acreditar que vale a pena, sim, a leitura, ou sua tentativa.

Para quem quiser prestigiar o lançamento, como pode fazer?

Basta comparecer à Realejo Livros, no dia 14 de fevereiro, a partir das 18 horas. Não tem erro. O espaço é agradável, acolhedor, e eu vou estar pronta para receber todos que lá estiverem de coração e braços abertos.