
Cláudia Alonso é muitas e todas são referência. É do grupo teatral Orgone, é do Espaço Tamtam. Do Rolidei. É servidora pública de Santos. Psicóloga. Bailarina e coreógrafa. É a filha da Regina, educadora e poeta. É sobrinha de duas educadoras que dão nome a escolas municipais de Santos. É também, desde fevereiro, vereadora da Câmara Municipal de Santos. É tudo isto e muito mais. Neste papo exclusivo com o Jornal da Orla, ela fala sobre a experiência como vereadora, a necessidade de novas políticas públicas e legislações que amparem quem em sua visão nunca teve voz nem vez e também sobre outros assuntos. Confira a conversa:
Sua trajetória foi toda no mundo da psicologia, da inclusão, das artes e da educação. Estar vereadora é o culminar de um trabalho de uma vida, né? Não é um negócio fruto de uma campanha simplesmente, então…
Essas 1.838 pessoas aí que foram lá e colocaram o voto, a gente olhou no olho e a gente sabe quem são. E eles tinham uma expectativa muito grande de representatividade. “Você é a minha vereadora!” Você é que vai lutar pela gente. Desde o cara que tem o down, até o cara que tem autismo, o que é surdo, o cara que tem deficiência física, até o cara que está em situação de vulnerabilidade porque vive na extrema pobreza. Então, tinha uma expectativa grande. Sabe quando um barco está afundando e você acha uma boia? Eu estava me sentindo assim. A bóia. E isso começou a me deixar muito preocupada, porque eu pensava: “como vai ser se não acontecer?”. Mas, à parte esta angústia, a campanha foi, como toda a minha vida, repleta de felicidade. Os nossos encontros nas ruas, as mães abrindo a casa para a gente se reunir, falando com o vizinho, batendo na porta, literalmente. A minha mãe e uma outra mãe de uma jovem que a gente tem lá, escreveram cartinhas à mão para os vizinhos. Quando veio o resultado, foi de fato muito difícil de contextualizar isso pra eles. Porque pra eles, isso estava escrito, era uma certeza. Então as pessoas me ligavam, me abraçavam chorando. Eu não tive o direito de chorar, sabe? E quando elas, ainda mais, elas viam a quantidade de votos que faltaram para a conquista do mandato, que foi muito pequena. O mandato que exerço hoje é fruto do trabalho de uma vida somado ao de todas estas pessoas que acreditam nesta construção que é o reflexo real de um trabalho que é de muito antes da campanha e não acabou com o fim das eleições.
Já está se sentindo vereadora de fato?
Desde que eu entendi na minha vida, já desde lá atrás, quando eu fiquei 17 dias na vereança, qual é o papel de um vereador, comecei a entender que eu sempre fui vereadora, só não estava num cargo que, como agora, que me abre determinadas portas e possibilidades, enquanto autoridade que representa a população. e representar as pessoas em situação de vulnerabilidade, de exclusão. Falei no primeiro dia: não somos café com leite.Não minimizem. Essa história de chamar pelo diminutivo, de falar que é um downzinho, um deficientinho, um louquinho, um pobrinho. Por favor, isso tem que acabar. Eu tenho duas vantagens sobre muita gente, eu sou psicóloga, então o distanciamento pra mim é algo que faz parte da minha carreira profissional e eu sou atriz, onde o mesmo distanciamento tem que existir. Hoje as pessoas me param, até pessoas que não conheço, e celebram eu estar na Câmara. Os meninos e meninas estão felicíssimos. Dizem: “tia, nós vamos lá”. E eu digo “sim, vocês vão”. Porque eu sempre falei, o gabinete não é meu, aliás, ele não é de ninguém. Ele é do povo. Mas a gente não tem este hábito, de frequentar as sessões, entender o que está sendo discutido.
O seu mandato vem priorizando todo este público que sempre ficou às margens.
O que eu falo é muito sério. Quando eu vou pra psicologia, mesma coisa. Se eu sento com uma pessoa na minha frente pra cuidar, minha palavra pode pode resgatar ou acabar a vida dessa pessoa. Qual é a tua atitude quando você está à frente de alguém que é mais vulnerável, que está em uma situação X que não está, vamos dizer assim, dentro da normalidade, ou que não compreende a tua fala, o que que você faz? Você finge que você não vê? Você olha pro celular? Você joga pra baixo do tapete? Você dá uma esmola e acha que Deus vai olhar o teu pecado e te curar, te livrar dos pecados pra você ganhar um lugar no céu?
A arte, com quem você sempre trabalhou como meio para o resgate de tanta gente, terá também espaço?
Em todos os sentidos. Você sabe o quanto a gente luta para que se entenda isso, para que pessoas que trabalham com arte não façam disso algo que também pira, que também mata, que também não tem responsabilidade. Minha maior escola ainda é o Tamtam, aquilo que o Renato di Renzo sempre diz pra gente: quando você está num palco, quando você está num púlpito, quando você fala pras pessoas, você está formando opinião. Eu acho que a arte, ela tem uma varinha de condão, entendeu? Aquilo que você fala no palco, aquilo que você transmite numa tela, numa pintura, num canto, na música, na dança, aquilo impacta sobre as pessoas de forma eterna, então é impossível eu não juntar uma coisa com a outra, então todo tipo de ação que venha com responsabilidade, que seja para todos e que tenha essa linguagem pra mim, eu acho que assim não dá pra deixar de lado, entendeu? Então são coisas que eu quero cada vez ampliar mais, quero conhecer, quero conhecer trabalhos, quero ir, quero visitar, né? Quero fazer trocas, quero ampliar
Como tem sido a experiência na Câmara?
Já fiz algumas sessões e em todas eu sentei com a minha assessoria e estudei. E pensei em cada palavra que seria dita no plenário. Porque eu tenho uma preocupação enorme com isso. Porque tudo isso é mítico, tá dentro do nosso arquétipo, né? Que é esse inconsciente coletivo, que é aquilo que a gente não domina, não é? Então, como eu tenho essa outra formação, entendeu, Gustavo? Isso me preocupa imensamente, porque, assim, o que é que eu estou falando que as pessoas entendem ou não entendem? Então, assim, pra mim está sendo um exercício novo de placidez, de sensibilidade. Eu cumprimentei vereador por vereador e vou continuar cumprimentando todos os dias. Porque isso é importante, isso é resgate de relação, eu não estou falando aqui de política partidária. Estou entendendo que somos 21 pessoas que querem o bem pra Cidade de Santos, porque se alguém tem interesses da ordem individual não deveria estar naquele coletivo.Então eu entendo que eu e mais 20 colegas de trabalho, estamos ali para que a cidade cresça e se desenvolva.
Você tem feito, a cada fala no plenário, a audiodescrição, não?
As pessoas precisam entender por que a gente tá falando de audiodescrição. Pode não haver uma pessoa com deficiência naquele momento, mas em outro haverá. Isso fica gravado, as pessoas precisam entender quem eu sou. Até pra uma pessoa que tem uma deficiência intelectual, cuja compreensão é outra. Eu sou uma mulher branca, tenho cabelo vermelho, tô de batom vermelho, tô de vestido azul e com argolas que tem pedrinhas. Acabou. Eu demorei mais do que 20 segundos pra falar isso? Não compromete nada. E o mesmo caso das libras, que são a segunda língua oficial do Brasil. Olha que loucura. E a gente é obrigada a falar inglês, espanhol, pra passar no vestibular. Se você sabe falar português e sabe falar Libras, você é bilíngue sim. Fora que assim, Libras, ela te abre pra um olhar que é um pouco esse, você entender como o surdo pensa. Porque como é uma outra língua, não é só uma tradução ipsis literis, não é uma dublagem, é uma outra língua, tem palavras que não existem no alfabeto, na gramática, nas palavras de Libras. Por isso existe o intérprete. Você precisa interpretar o texto para poder falar. Isso é uma arte, e isso faz a gente estar acordado o tempo inteiro. Então eu fiz uma proposta de que todo vereador tenha até 30 segundos antes do tempo regimental, desde que ele expresse esse desejo. “Senhor. Presidente, vou fazer a minha autodescrição”, não é mais que 30 segundos, até porque não dura mais do que isso, entendeu? Então, isso precisa ser uma prática, de novo, e um exercício de olhar para si, e aí você começa a se colocar no lugar do outro, eu acho que isso é o que faz, quando você vai fazer Libras, que você se sente um atrapalhado com as mãos, que é muita coordenação motora, aí você acho que começa a se colocar no lugar do outro.
A inclusão e tudo o que ela representa vai ser o forte do seu trabalho enquanto você estiver na Câmara, então…
Eu estudei muito pra campanha a fim, da melhor forma, ampliar os olhares. Se você observar a questão da diversidade. Diversidade significa variedade, pluralidade, diferença. Diversidade é a reunião de tudo aquilo que apresenta múltiplos aspectos e que se diferenciam entre si. Exemplo, diversidade cultural, biológica, étnica, linguística, religiosa. Então, a palavra inclusão, ela está dentro do conceito de diversidade A gente precisaria cada vez mais ampliar isso e este olhar. Ok, ainda precisamos exercitar. Por quê? Porque se inclusão é uma sociedade para todos, a gente não deveria ter barreiras. Aí tem a lei. A lei que manda pôr a rampa, a lei que manda botar o elevador, a lei que põe o piso tátil. E onde está a atitude? De novo. Outro dia eu fui com meus pais num restaurante. Agora é a moda do tablet, do QR Code, né? E meu pai adora ler o cardápio. Quando a gente sentou, que ele viu que era o QR Code, ele falou, ah, não quero ficar, vou embora, não sei mexer nisso. Ele ficou muito nervoso.Eu levantei, fui lá na moça e disse: “amiga, tem cardápio de papel, né?”. Ela disse que eles haviam extinto no dia anterior mas que não tinha problema nenhum. A moça foi e ela atendeu meu pai e minha mãe. Ela foi explicando tudo. Eles não precisaram acionar pelo QR Code. Ela mostrava no celular dela, que era grande, tipo de um tablet, e dizia, o que o senhor quer? Ah, mas eu quero olhar. Pode olhar. Você entendeu? E isso é acessibilidade atitudinal. Ela não precisou ter nenhum mestrado pra isso. Você entende? São pequenas coisas, porém, extremamente significativas. Então, é um pouco como ter que educar as pessoas para elas terem sentimentos, para pra elas olharem pro outro, pra elas terem exercício de empatia.
O que é um grande desafio, aliás. Ter empatia…
As pessoas sabem o que é a palavra empatia? Aí você diz, ah, é se colocar no lugar do outro. Como é que a pessoa faz isso se ela não se olha?
E como é que é esse desafio pra você então, como legisladora, a partir de agora?
Eu acho que é justamente trazer à luz, dar à luz o significado destas palavras e fazer proposituras que venham mexer nas coisas que estão dormentes. Apresentei, por exemplo, a proposta de lei que permite que o vereador possa substituir um dos assessores a que tem direito, de nível C2, por dois assessores C4, desde que estes dois, obrigatoriamente, sejam PCDs. E olha que legal, eu fiz uma conta. Sem querer, hein? São 21 vereadores. Se cada vereador fica com dois C2 e dois C4, você tem 42 PCDs na câmara. Você vai ter uma circulação dentro da câmara que vai ser outra. Isso é espetacular. Para os outros, para eles, para todo mundo. Isso é acessibilidade no trabalho, e eu não estou falando de cota, tá? Isso não é cota, isso é inclusão. Então, isso já está previsto. Não se criou ônus, não se diminuiu ninguém. Apenas se abriu acesso. Isso vai ser educativo para todo mundo. Para toda a Câmara.
As calçadas da cidade também são uma questão a ser trabalhada e superada, não?
Há algum tempo, caí em uma calçada e me machuquei feio. E o que que aconteceu? Era na frente de um comércio, tinha um tampo rebaixado, porque subiram a calçada. O cara subiu a calçada, ok. Ele avisou a empresa que cuidava do tampo? O Poder Executivo fiscalizou na época? E aí eu comecei a perceber o chão, porque eu me vi naquela situação também, de bengala, de muleta, de andador. É um negócio devastador. Tem calçada que tem uma inclinação absurda, eu fico imaginando um cara de cadeira de rodas. Não dá pra andar. Por isso que eles andam pelo meio da rua.
Como vai continuar seu trabalho no Tamtam?
Terça e quinta, obrigatoriamente, é Câmara. Quarta-feira é um dia que eu não vou pra lá só em uma situação extrema, porque quarta-feira é o dia que eu dou as aulas de dança no Tamtam. Aí você tem a segunda e a sexta, então a segunda e a sexta eu vou me dividir entre atender a população, ir nos lugares que a população chama e ir pra o Tamtam, no fim de tarde e noite. E aí tem o final de semana, o meu domingo é sagrado, é o dia da minha família, de estar com eles. Mas já aconteceu de eu dizer para os meus pais, olha, esse domingo eu não venho comer por causa de tal coisa, eles ficam tristes, muito, então tento o quanto possível reservar este dia.
Isso é importante. Hoje na Tamtam a gente tem cento e oitenta e poucos beneficiários, e eu tenho uma fila de espera hoje de mais de 60 pessoas, que se Deus quiser vão entrar, mas é um monte da gente. O Renato de Renzo é uma figura. Ele diz: “não existe não, mas não é sempre sim”. É muito conceitual essa frase, as pessoas vêm e uma aula que era pra ter 18 beneficiários mas tem 25, 30…Aos poucos o trabalho foi ampliando. A grande maioria das mães não fica mais lá fora esperando, elas já entram, e elas entram não é pra ficar olhando ninguém porque eu falo que lá não é aquário. Vem para participar, né? Então hoje a gente, a nossa oficina de artesanato, de costura é algo muito forte, a gente tá com uma produção de bolsas, uma produção de macramé maravilhosa e aí você tem mães que nunca costuraram na vida, nem na mão, nem na máquina e hoje elas costuram. Aí você tem criança que vem que quer costurar, tinha uma de sete anos que a monitora tinha que pôr três livros embaixo do pé dela pra ela alcançar o pedal? Você tem pessoas com deficiência, com autismo fazendo. Cada qual do seu jeito, né? Logicamente que respeitando as regras, eu acho que a arte, ela tem essa coisa muito bacana. O bom artista precisa ouvir seu orientador, seu diretor, seu coreógrafo, senão ele não vai ser bom. Então, eu acho que isso eu também levo. Esse distanciamento e ao mesmo tempo essa disciplina, que a psicologia e a arte têm juntas, diferentes mas juntas, e que se complementam, e que eu tenho a sorte de de ter isso na minha vida.
Sua história familiar é muito rica. Sua mãe, poeta. Suas duas tias, professoras que foram exemplo e dão nome a escolas municipais da cidade. Como você olha toda este caminho, em perspectiva?
Minha família nasce no mercado, na rampa do mercado. Meu avô era uma pessoa ultra humilde, que trazia bananas do litoral no tachão. Minha avó teve sete filhos, todo mundo morava ali no mercado, minha mãe conta até hoje com uma melancolia enorme. E eu sei que talvez essa seja uma das maiores dores da minha mãe, a saudade. E isso me faz chorar. Porque não se tem mais isso.
Por que não?
As pessoas não se olham mais. E as pessoas têm medo de olhar. Porque elas têm medo de se desarmar. Então a gente virou uma armadura ambulante. Me preocupo muito com isso. Já passei na metade, sei que eu construí muito, mas eu tenho que poder construir mais. Então, preciso aproveitar o momento para falar em nome dessas pessoas.
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