Sala de Ideias

Cotas: raciais ou sociais?

28/01/2022
Cotas: raciais ou sociais? | Jornal da Orla

Douglas Martins

Reconhecer apenas uma discriminação no contexto da discriminação múltipla é negar as demais

A vida está cheia de falsos dilemas. Este é um deles. Cotas raciais não se opõem às cotas sociais. Tomando a questão pelo início, é preciso compreender a razão das cotas independentemente da segmentação (de gênero, racial, social etc). Cota pressupõe discriminação. Quando alguém encontra barreiras para acessar direito ou condição em tese franqueados a todos, surge a necessidade social de afastar a barreira. As cotas são instrumento para isto.

Para compreender as cotas se faz necessário reconhecer a discriminação. Se a discriminação é de gênero, tem que haver reserva de vagas para mulheres. Se é por deficiência, tem que haver reserva de vagas para os deficientes. Se é pela cor da pele, tem que haver reserva de vagas para negros. Pelas cotas se inclui quem historicamente fica excluído. Por isso cota é política pública de inclusão em favor da diversidade no ambiente social onde se mantém e se naturaliza a discriminação.

Para haver cota deve se reconhecer a discriminação. E se for mais de uma discriminação ao mesmo tempo envolvendo etnia e estrato social, por exemplo? A primeira “fica absorvida” pela última? Ao responder “sim”, abstrai-se o racismo. Ao responder “não”, compreende-se o fenômeno da discriminação múltipla, forte marcador da nossa sociedade. O Brasil é simultaneamente machista, homofóbico, transfóbico, racista etc. Essas discriminações se sobrepõem e nunca se anulam!

Reconhecer apenas uma discriminação no contexto da discriminação múltipla é negar as demais. É a falácia do tipo: se existe isto não existe aquilo. Mesmo que existam os dois. Salta aos olhos a inconsistência. Mas é esse o argumento mais comum para “desaparecer” com o racismo resiliente entre nós e atacar as cotas raciais. O racismo não está contido na discriminação social. É uma discriminação de outro tipo.

Equívocos e embaraços eventuais para definir critérios fenotípicos não cancelam as cotas. Os grupos hegemônicos sempre sabem quem destoa deles. Aprender sobre a dinâmica da discriminação e seus critérios também é necessário. Neste ano entra em pauta a revisão das cotas raciais. O critério para considerá-las dispensáveis é a superação do racismo. Atingimos esse objetivo? Não chegamos nem perto.

As cotas raciais continuam necessárias para tornar nossa sociedade mais diversa, plural e democrática de fato. Portanto a questão não é cota social “ou” cota racial. Essa é uma falsa oposição. Precisamos de cota social “e” cotas raciais quando houver discriminação múltipla. Cotas não são racistas. Racista é o ato de negá-las quando são necessárias.

 

Douglas Martins é advogado e jornalista. Foi Secretário Adjunto da Secretaria de Igualdade Racial da Presidência da República