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Como nascem as crônicas

22/02/2025 Paulo Schiff
Como nascem as crônicas | Jornal da Orla

Como se começa uma crônica? Machado de Assis, no final do século 19, dizia que uma receita infalível é reclamar do calor. A era do petróleo estava apenas começando. A quantidade de combustíveis fósseis despejando gases de carbono na atmosfera ainda era mínima. Mesmo assim o calor já era de “rachar passarinho”.

E daí duas vizinhas se reuniam na rua pra reclamar do calor, diz o cronista, depois passavam a comentar as plantações do vizinho, dos vegetais pulavam para a vida amorosa dele e estava posta a crônica.

O mundo mudou. Nas grandes cidades, duas vizinhas, que moram de parede encostada num prédio, mal se cumprimentam. E se reclamam da temperatura no elevador, não tem horta, nem vida amorosa de vizinho para dar sequência às queixas calorentas.

A vida presencial se tornou mais discreta e confinou a fofoca e o exagero nas redes sociais, junto com a mentira e a desinformação.
Elas talvez saibam do BBB, da Anitta, do Bello, do Neymar e até da Nicolle Kidman, mas não sabem nada das peripécias sexuais de quem mora ao lado.

Por falar em Neymar, no domingo passado, no estádio da Vila Belmiro, os torcedores suavam como cachoeiras, um zagueiro do Santos teve desidratação e um vendedor de água e refrigerante, completamente ensopado, chegou a ter um chilique quando solicitado ao mesmo tempo por um conjunto de clientes sedentos.

As pesquisas científicas indicam que as temperaturas médias estão quase dois graus superiores às da época das comadres do Machado de Assis.

A temperatura média das discussões políticas, essa subiu bem mais que esses míseros dois graus. Nesta semana, quente no clima e na politica, do comentário sobre a denúncia da Procuradoria Geral da República contra o ex-presidente e ex-Mito, dois vizinhos podem passar não à vida amorosa de uma vizinha, mas sim às chamadas vias de fato: porrada, tiro e bomba.

O mundo mudou tanto que pode acontecer também de uma mulher e deputada – armada – correr atrás de alguém na rua por conta de uma discussão polarizada.

Machado de Assis chega à conclusão de que o calor castiga menos uns – os presentes a um sepultamento às 11 da manhã no Rio 40°, que se despedem do falecido e voltam para a proteção de casa – do que para outros – os funcionários do cemitério que continuam lá trabalhando sob o sol escaldante no calor senegalesco.

Nisso o mundo não mudou muito. É provável que os torcedores suarentos da Vila Belmiro tenham se resguardado no ar condicionado depois do término do jogo do Santos no domingo passado.

Será que o vendedor ensopado e estressado teve direito a essa mesma comodidade para se refrescar?