Colunas

As horas nuas

22/03/2025 Rafael Medeiros

Margeando a terceira idade, uma nostálgica e decadente atriz rememora suas antigas glórias nos palcos e seus amores passados, esquecida na companhia de seu gato e quase sempre alcoolicamente entorpecida. Nada de original neste enredo, portanto. Porém, trata-se de um romance de Lygia Fagundes Telles, uma de nossas maiores. E, bem por isso, um cenário aparentemente trivial se apresenta, sob a sua caneta, como um exuberante mundo fantástico nunca antes pisado.

As Horas Nuas é encarado pela crítica especializada como o livro definitivo de Lygia. De fato: nele a autora alcançou um ponto inquestionável de erudição dentro da linguagem – e poucos são os (as) escritores (as) que chegam a esse cume. Alternando a voz narrativa entre a atriz Rosa Ambrósio e seu gato Rahul (um irônico espectador consciente de tudo o que se passa com sua dona), o leitor acompanhará a letárgica última dança da atriz, pontuada pelos impagáveis diálogos estabelecidas com a analista Ananda, a empregada doméstica Dionísia e com sua filha Cordélia.

Personagens cativantes e inesquecíveis, escrita madura e bem pensada, domínio pleno da estilística, complexidade revestida de simplicidade. É com um pouco de cada coisa que se faz um bom livro. Lygia elevou todos esses elementos ao limite e entregou tudo. Uma escritora enorme.

 Motivos para ler:

1- Lygia Fagundes Telles (1918-2022), é, para muitos, a maior escritora brasileira, ombreando-se com Clarice Lispector. Formada em Direito, exerceu o cargo público de Procuradora do IPESP até a aposentadoria, dividindo suas atribuições jurídicas com a literatura. Laureada com diversos prêmios (Jabuti, Aplub, Camões etc.), teve sua obra traduzida para diversos países. Uma escritora única;

2- A técnica literária de Lygia brilha fortemente já no capitulo 2, quando o leitor é apresentado ao gato Rahul. Em uma das passagens mais bonitas do livro, o felino relembra de sua vida passada e, com resignação, encara que “numa outra encarnação fui aquele jovem romano mas hoje sou este gato”.  Com uma personalidade muito própria, Rahul questiona-se: “não tenho fé, não acredito em nada. Um gato memorialista e agnóstico – existe?”. Eis aqui uma das grandes invenções de Lygia: o gato assumirá a narrativa em alguns capítulos;

3Lançado em 1989, o livro lateralmente retrata temas caros de sua época: a preocupação com a AIDS, a cultura pop, o movimento feminista encarnado na analista Ananda, a incipiente República Democrática Brasileira inaugurada pela Constituição de 1988. É sempre um exercício interessante cotejar fatos e experiências históricas: só assim não nos rendemos a um eterno presente que não conhece o antes nem o depois e, por isso, está sempre fora da história.