Margeando a terceira idade, uma nostálgica e decadente atriz rememora suas antigas glórias nos palcos e seus amores passados, esquecida na companhia de seu gato e quase sempre alcoolicamente entorpecida. Nada de original neste enredo, portanto. Porém, trata-se de um romance de Lygia Fagundes Telles, uma de nossas maiores. E, bem por isso, um cenário aparentemente trivial se apresenta, sob a sua caneta, como um exuberante mundo fantástico nunca antes pisado.
As Horas Nuas é encarado pela crítica especializada como o livro definitivo de Lygia. De fato: nele a autora alcançou um ponto inquestionável de erudição dentro da linguagem – e poucos são os (as) escritores (as) que chegam a esse cume. Alternando a voz narrativa entre a atriz Rosa Ambrósio e seu gato Rahul (um irônico espectador consciente de tudo o que se passa com sua dona), o leitor acompanhará a letárgica última dança da atriz, pontuada pelos impagáveis diálogos estabelecidas com a analista Ananda, a empregada doméstica Dionísia e com sua filha Cordélia.
Personagens cativantes e inesquecíveis, escrita madura e bem pensada, domínio pleno da estilística, complexidade revestida de simplicidade. É com um pouco de cada coisa que se faz um bom livro. Lygia elevou todos esses elementos ao limite e entregou tudo. Uma escritora enorme.
Motivos para ler:
1- Lygia Fagundes Telles (1918-2022), é, para muitos, a maior escritora brasileira, ombreando-se com Clarice Lispector. Formada em Direito, exerceu o cargo público de Procuradora do IPESP até a aposentadoria, dividindo suas atribuições jurídicas com a literatura. Laureada com diversos prêmios (Jabuti, Aplub, Camões etc.), teve sua obra traduzida para diversos países. Uma escritora única;
2- A técnica literária de Lygia brilha fortemente já no capitulo 2, quando o leitor é apresentado ao gato Rahul. Em uma das passagens mais bonitas do livro, o felino relembra de sua vida passada e, com resignação, encara que “numa outra encarnação fui aquele jovem romano mas hoje sou este gato”. Com uma personalidade muito própria, Rahul questiona-se: “não tenho fé, não acredito em nada. Um gato memorialista e agnóstico – existe?”. Eis aqui uma das grandes invenções de Lygia: o gato assumirá a narrativa em alguns capítulos;
3– Lançado em 1989, o livro lateralmente retrata temas caros de sua época: a preocupação com a AIDS, a cultura pop, o movimento feminista encarnado na analista Ananda, a incipiente República Democrática Brasileira inaugurada pela Constituição de 1988. É sempre um exercício interessante cotejar fatos e experiências históricas: só assim não nos rendemos a um eterno presente que não conhece o antes nem o depois e, por isso, está sempre fora da história.
Muito bom, tão bom qto um show do darkscape
Excelente tb ,é seu texto de análise Rafael. Já quero ler.
Interessante, um gato narrador, beira o maligno.
Lerei, grato pra
Resenha.
Interessante, um gato narrador, beira o maligno.
Lerei, grato pra
Resenha.
Interessante, um gato narrador, beira o maligno.
Sra Lygia, brilhante.
Lerei, grato pela resenha.
Prezado Dr. Rafael obrigado por nos brindar com esta excelente coluna nossa de cada dia. Muito perspicaz a observação do Dr. Ivan, preciso urgentemente averiguar a narrativa do gato maligno.
Resenha que faz ter vontade de ler todos os livros. Obrigada pela indicacao!
Me convenceu a ler mais um.
Sem dúvida uma obra literária complexa que explora temas universais através de uma narrativa poética e introspectiva características da autora.
Parabéns pela resenha e escolha de autores atemporais.