Na semana passada, Santos apresentou ao país um episódio de brutalidade quase inacreditável. Um motorista agrediu com uma voadora no peito um pedestre de 77 anos que atravessava a rua em companhia do neto. O motivo: o susto de um quase atropelamento e o fato de, na sequência, o pedestre ter tido a ousadia de encostar a mão no Jeep Commander do cidadão, um automóvel que não sai da concessionária por menos de R$ 200 mil.
O avô bateu a cabeça na calçada e morreu segurando a mão do neto de 11 anos.
Nossas consciências estão anestesiadas pelo bombardeio diário de notícias de violência, individual e coletiva, a que estamos submetidos. A truculência e a estupidez parecem não ter mais limites. Mesmo assim, é difícil tomar conhecimento dessa notícia e dos desdobramentos dela sem chorar.
Qualquer um de nós se põe no lugar dos familiares, amigos e até mesmo simples conhecidos daquele senhor que saiu com o neto para alguma atividade e ficou estendido sem vida no chão depois de uma agressão covarde, estúpida e injustificável. Qualquer um de nós imagina a dor e o trauma do neto que segurava a mão do avô desacordado na calçada.
Nesta semana, na reconstituição do crime, o agressor chorou, pediu desculpas e disse que faz tratamento psicoterápico com remédios. Nada disso ameniza os efeitos e as consequências do ato de violência extrema que ele cometeu.
Em 1977, no filme Esse Obscuro Objeto do Desejo, o diretor espanhol Luis Buñuel alertava para essa banalização da violência que estava se desenhando. Numa cena profética desse filme, dois executivos saem simultaneamente de duas residências luxuosas, separadas por uma quadra em Madri. Eles são em tudo parecidos: no terno elegante, no automóvel de luxo com motorista, na pasta de documentos que carregam. Um dos automóveis explode quando o motorista dá a partida. A língua de fogo tem a altura de um prédio. O outro executivo olha a cena e diz para o condutor do veículo, sem alterar o tom de voz:
“É melhor você fazer uma manobra e evitar esse quarteirão da explosão.” A reação dele é de absoluta naturalidade.
Nós nos acostumamos a contar mortes violentas e estupros aos milhares todos os anos, como se isso fosse uma coisa natural. Quase 50 anos depois do filme do genial Buñuel, a indiferença daquele executivo espanhol diante da violência da explosão que mata um vizinho dele serve como uma carapuça para cada um de nós.
Em 1977, ainda não havia redes sociais para potencializar o discurso de ódio. Mas o mundo já tinha assistido ao horror do nazismo e do fascismo, também construídos com discursos populistas de ódio e propaganda política enganosa.
Para nazistas e fascistas, no passado, e para os pregadores do ódio nas redes sociais atuais, o outro, o que pensa diferente, o adversário, deve ser destruído.
Está nesse conceito o ovo da serpente. Que pode germinar em voadoras na calçada em Santos ou na mutilação e na morte de crianças, mulheres, idosos e enfermos indefesos em Israel, na Faixa de Gaza ou na Ucrânia.
Precisamos desanestesiar urgentemente as nossas consciências, recuperar nossa sensibilidade e nossa indignação e refrear essa escalada da truculência com atitudes coletivas. Isso enquanto ainda conseguimos derramar lágrimas pelo sofrimento do avô vítima da voadora, dos familiares, dos amigos, dos conhecidos e, principalmente, do neto que segurava a mão dele.