“O feriado de 20 de janeiro de 1971 é um dia que não tem fim.” Foi nessa data que a vida da família Paiva, constituída por Eunice, Rubens e suas cinco crianças, mudou para sempre. Seis militares invadiram a residência e, sem autorização judicial, levaram Rubens para um interrogatório no DOI-Codi, do qual nunca retornou. Eunice e uma filha também foram para lá levadas. A mãe ficou doze dias trancada em uma cela, sozinha e sem entender o que se passava. Começava ali o fardo que Eunice e seus filhos carregariam para sempre: o nunca explicado desaparecimento de Rubens.
Ainda estou aqui é um livro de memórias. Em verdade, é mais do que isso: é um testemunho histórico. O filho Marcelo Rubens Paiva inicia narrando sua infância feliz vivida no início de um regime militar que já se insinuava – e se confirmou – abusivo e terrorista. O feriado de 20.01.71 acabaria com toda a inocência. E foi do mais profundo tormento que emergiu a grande personagem do livro, a mãe, a heroína da família, Eunice, a mulher que não só resistiu, mas viveu com força e coragem para criar seus cinco filhos e descobrir, afinal, o que se passou com seu marido.
Em meio a tantos anos de luta pela verdade, Marcelo define bem sua mãe: Eunice nunca dramatizou, nunca perdeu o controle, nunca teve pena de si mesma, nunca pediu nada. Lutou com palavras e de cabeça erguida. A pose de quem sabe enfrentar os inimigos. E venceu.
Motivos para ler:
1- Marcelo Rubens Paiva ganhou notoriedade com seu primeiro livro, Feliz ano velho, no qual relata seu terrível acidente: aos 20 anos mergulha numa lagoa rasa demais, esmigalha suas vértebras e perde os movimentos do corpo. Ainda estou aqui foi publicado em 2015 e, graças ao excelente filme homônimo, voltou a figurar como o livro de não ficção mais vendido no país;
2- O eixo do livro é o desaparecimento político de um pai de família, tática compartilhada pelo ciclo das ditaduras militares latino-americanas. O Estado opressor, sabedor do assassinato, enredava os familiares do desaparecido num jogo de incertezas, dando-lhes esperança para aprofundar a angústia. Não funcionou com Eunice: seu espírito nunca foi quebrado;
3– Foram longos 21 anos de ditadura. Tempos em que o povo não podia votar, em que Legislativo e Judiciário perderam suas prerrogativas institucionais para se tornarem puxadinhos servis do Executivo. Tempos de censura e violência: qualquer um do povo que exprimisse qualquer insatisfação era rotulado de “inimigo comunista” e passível de tortura e morte. Em verdade, os militares, aproveitando o apoio de parcela da população, vislumbraram a oportunidade de assumir altos cargos e ganhar dinheiro. Ambiciosos, usurparam o poder civil por mais de duas décadas. Deixaram suas atribuições legais de lado por pura vaidade. Nada mais antigo. Nada mais atual.
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