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A louca da casa

15/02/2025 Rafael Medeiros
A louca da casa | Jornal da Orla

Escritores profissionais – mormente aqueles que chegam aos altos níveis de reconhecimento – possuem uma obsessão em comum: escrever sobre a escrita. Stephen King, Olga Tokarczuk, Annie Ernaux, Umberto Eco, Philip Roth, Murakami, Kundera e tantos outros, em algum momento de suas carreiras, dedicaram títulos ao tema. Nós, leitores, agradecemos: é sempre fascinante vislumbrar como mentes brilhantes funcionam, e se trabalhamos de alguma forma com a escrita, ainda ganhamos o bônus de aprender recursos úteis do ofício.

A espanhola Rosa Montero, imbuída desse propósito, lançou o seu aclamado A louca da casa. Entretanto, há qualquer coisa de diferente neste livro. Além de enunciar seus meios e modos de escrever, Rosa imbrica fatos autobiográficos, reflexões e fantasia. Cheia de boas referências, a autora habilidosamente prova que livros realmente conversam entre si e rememora fatos pouco conhecidos (alguns não muito lisonjeiros…) de grandes escritores. Para além de tudo isso, as impagáveis cenas de sua vida transitam entre o autobiográfico e a ficção, confirmando sua tese de que a memória não é algo muito fiável – antes, é uma construção do vaidoso presente.

Entre arrebatadoras paixões amorosas, o exercício do ofício literário e episódios cômicos de uma vida bem vivida, Rosa nos lembra que a imaginação é fundamental para atingir nosso profundo subjetivo e, assim, acessar o mais valioso núcleo humanístico. E conclui que “na pequena noite da vida humana, a louca da casa acende velas.”

Motivos para ler:

1- Rosa Montero – jornalista, romancista e ensaísta multipremiada – é um dos grandes nomes da literatura espanhola contemporânea. Além deste livro, os seus A ridícula ideia de nunca mais te ver e O perigo de estar lúcida granjearam grande sucesso no Brasil;

2- Apesar de se tratar de uma intelectual gabaritada, a experiência de leitura remete a uma leve, profícua e animada conversa com uma amiga muito inteligente. Extremamente fluido e sem qualquer afetação acadêmica, o estilo desse livro cativa, transformando o tempo de leitura empregado em verdadeiro deleite;

3Rosa rejeita a ideia de que exista uma “literatura de mulheres”, fundamentando bem sua posição: quando um homem escreve um romance protagonizado por um homem, ele fala do gênero humano universal. Também assim deveria ser quando uma mulher projeta uma protagonista mulher. Essa distorção decorre da constatação de que o mundo foi modulado pela experiência masculina. A cosmovisão feminina é diferente e começa a ganhar cada vez mais voz, não obstante a misoginia ainda vicejar fortemente mundo afora. Para alcançar a desejável aspiração da autora, a potencialização da literatura feminina – exista ou não esse rótulo – desempenha um papel fundamental.