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A guerra dos duques

22/03/2025 Vicente Cascione

Londres, setembro, 1969.

Quando o avião decolou naquela noite do Aeroporto de Heathrow, os passageiros nas poltronas pareciam compor a platéia do Royal Opera House.

A fleugma britânica daqueles homens de boas maneiras, naturalmente circunspectos, de poucas palavras, de gestos discretos e calmos desde o embarque sem atropelos, trouxe-me uma clara percepção de ordem, disciplina e educação e incutiram em mim um triste sentimento de inferioridade, obrigando-me, subitamente, a uma transformação de conduta.

Eu estava humilhado pela sobriedade daqueles fiéis contritos em seu vôo litúrgico numa abadia de asas.
Não arrisquei um movimento espontâneo, nem proferi uma frase em voz alta diante dos Duques de Windsor, paramentados com ternos de tweed, coletes e chapéu coco.

Veio, então, o whisky, e os nobres cavaleiros da rainha começaram a beber; e não pararam mais.

Talvez existisse, a bordo, uma genuína e inesgotável destilaria escocesa. Deve haver, por certo, reservas de whisky nos tanques dos aviões que partem de Londres.

Após uma hora de vôo, despontaram as primeiras gargalhadas e brados em voz alta. Uns após os outros, os súditos do reino levantavam-se de seus assentos, desfaziam-se de paletós e coletes, afrouxavam o laço das gravatas, e ostentavam rostos vermelhos, afogueados.

A câmara dos lordes virou um botequim.

Caiu no meu colo um cubo de gelo inaugural e, em voo rasante sobre minha cabeça, investiram os primeiros artefatos e várias bolotas de papel.

No meio do fogo cruzado, passou no corredor, ao meu lado, um dos combatentes, um cavalheiro sem sapatos, exibindo seu dedão do pé explícito através de uma meia de lã furada. O ponto fraco das elegâncias quase sempre são as denominadas roupas de baixo, ou vestes íntimas.

Ali, cada poltrona era uma trincheira, cada passageiro um soldado, o avião um campo de batalha.

Os anglo-saxões possuem espírito bélico e têm a guerra no sangue. Reconheço, no entanto, ser aquela uma guerra pacífica sem causa ignóbil, um conflito temporário e efêmero capaz de durar apenas o percurso Londres-Roma e cujo armistício viria logo após os efeitos da bebedeira.

E lamento confessar, sem vaidade e até com um vago remorso, não ter participado da batalha; fui apenas um banal correspondente de guerra, neutro como um suíço.

Quando desembarcamos em Roma, felizmente não havia baixas a lamentar.

Então, enquanto os Duques de Kent passavam pelo controle de passaporte evidenciando os sinais da luta, compreendi que os súditos da rainha, lacônicos e circunspectos, elegantes e gentis, guardam, dentro de si, virtudes imensas e graves segredos.

Usam meias furadas, jogam bolas de papel, disparam cubos de gelo, dizem coisas impublicáveis, são razoavelmente maloqueiros, têm alma de carioca.

Reis e rainhas da Inglaterra – acho eu – sempre viveram um dilema de ser, ou não ser; eis a questão: no fundo, no fundo, salvam as aparências. São adeptos de rodar a baiana e se ligam num barraco.