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A fuga

29/03/2025 Vicente Cascione

Rio de Janeiro, um verão antigo dos meus 18 anos.

Lá estava a Lua, debruçada sobre o enorme aqueduto estendido diante de meus olhos. Eu, jovem vagabundo em minha primeira madrugada no Rio, sentia o carinho de uma brisa leve, carregada de aromas indefinidos.

Que lugar era aquele onde eu tinha ido parar por acaso, a caminho do hotel, depois de uma noite de gala de Pelé e Garrincha, na arena do Maracanã ? O Rio, a viagem de avião do jovem repórter esportivo, a madrugada em terra estranha, tudo era a primeira vez.

Se no meio da noite os gatos parecem pardos, os pensamentos ficam coloridos nos confins da madrugada; e eu me convidava à aventura naquele espaço misterioso capaz de mostrar-se, ao mesmo tempo, brutal e gentil. Que lugar era aquele?

Num canto da praça, à sombra do aqueduto, vi, de repente, uma vadia sendo surrada com chicote de aço. Ela gritava, e ele bateu nela o quanto quis, até o retorno do silêncio e da poesia da noite. Depois do açoite, ela se aconchegou no corpo de seu dono, e partiram ambos, entrando numa rua escura.

Mas havia um silêncio grave e demorado, com estranhas sombras semoventes, e um vago mistério em torno de mim.

Tive medo, e corri.

Alguns passos adiante, um malandro à minha frente olhou para trás e me vendo correr, começou a correr em fuga, supondo estar sendo perseguido e ameaçado por mim.

Estávamos ambos, em disparada, ao longo de uma rua estreita e muito escura, povoada de árvores cujas ramagens cobriam-na inteiramente quase não permitindo a entrada de luz.

Naquela correria, sobreveio-me uma dúvida: estaria o malandro, fugindo de outra pessoa – vinda de atrás de mim – e não de mim ? Na incerteza, diante da hipótese, aumentei ainda mais a velocidade de meus passos.

Na agilidade e leveza dos meus dezoito anos, minhas pernas venceram; e quando eu estava prestes a emparelhar com ele, implorou-me aos gritos para eu não lhe fazer mal, “pelo amor de Deus”… Mas nem parei, e o ultrapassei, ainda com a suspeita de haver alguém atrás de nós.

E o malandro, ao constatar a continuação de minha desabalada carreira, prosseguiu em sua fuga, temendo meu hipotético perseguidor.

E assim, chispamos ambos, pelos quarteirões da Lapa, fugindo de ninguém. Só descobri estarmos na Lapa quando cheguei ao hotel Marialva.

Reduto de Miguelzinho, Camisa Preta, Meia Noite e Edgar, malandros reais cantados em samba, a Lapa não era apenas um bairro.

À noite, a alma da cidade trazida pela Lua, se incorporava ao lugar. A brisa, calma, pairando no ar, parecia ser o infindável movimento da eternidade.

A lembrança do adolescente aventureiro, naquela tão distante madrugada carioca, veio-me ao ver esta Lua acesa, na bela foto de hoje, brilhante sobre o velho aqueduto.

Não é Lua. É uma gota de lágrima derramada do luar dos olhos de minhas saudades…