Crônica

A arte de perdoar

02/08/2024
canva

Vingança ou perdão? Diante da ofensa, da agressão, da traição, do dano, as duas alternativas se apresentam. A mais atraente, na hora da raiva, é a vingança.

Na música popular, a exaltação dela mobiliza gigantes.

“Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros / Juro…

Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar.”

Chico Buarque acenava para os militares que torturavam, censuravam, exilavam e matavam opositores na ditadura 64-85.

Lupiscínio Rodrigues, traído, nem pensava em perdão:

“Só quero vingança, vingança, vingança / Você há de rolar como as pedras / Que rolam na estrada / Sem nunca ter um cantinho de seu / Pra poder descansar.“

Na contramão desse desejo, vem o perdão. Suave, discreto, meio incompreendido.

Muita gente pensa que perdoar é esquecer. Não é. Quando alguém fala: “Perdoei, esqueci.”, não é verdade. Se se refere ao prejuízo é porque se lembra muito bem dele.

Também não é absolver. A absolvição do outro não está ao nosso alcance. Quem tem esse poder é a justiça. Ou a dos homens, que advogados e juízes podem atrapalhar, ou a de Deus, perfeita.

Outro conceito errado de perdão é o da troca pelo arrependimento. Errado. Perdão é incondicional. Quem perdoa dessa maneira, na verdade humilha.

Se não é esquecimento, absolvição, troca por arrependimento, o que é, então?

É uma vitória sobre o ressentimento. Perdoar é cessar de odiar. Abrir espaço para desejar o bem para quem fez o mal. Não precisa sair de mão dada, abraçar, beijar, jurar amor eterno. Basta emitir uma energia positiva que brota do coração em direção a quem se perdoou.

Em química, o prefixo per pode significar mais. Permanganato tem mais átomos de oxigênio do que manganato. Peróxido, perclorato… Mais oxigênio, mais vida. “Per-doar”, então, é mais que “doar”, expressão máxima da potência humana.

São Pedro, bravo, perguntou a Jesus:

“Quantas vezes devo então perdoar? Até sete vezes?”. A resposta de Cristo ressoa até hoje lá da Antiguidade:

“Até setenta vezes sete vezes.”

A vingança não bomba só na música mas também na literatura, no cinema, nas novelas. É Conde de Monte Cristo, Avenida Brasil, O Outro Lado do Paraíso, o V de Vingança…

Nas relações pessoais, muitas vezes no lugar de investir na conciliação, jogamos querosene na fogueira da desavença. É fofoca, intriga, leva e traz de atitudes e declarações de um que fermentam o ódio e o desejo de vingança no outro.

Pra compensar tanto veneno, vai aqui a história de dois irmãos que viveram sempre em harmonia e depois da morte do pai repartiram a fazenda que herdaram e continuaram melhores amigos e vizinhos, cada um com a sua família. Um dia, depois de uma discussão boba, romperam. O mais novo desviou um rio para separar as duas casas. E o mais velho, antes de uma viagem, contratou um velho carpinteiro para construir uma muralha de madeira que vedasse totalmente a visão da casa do outro. Quando voltou, o velho, no lugar do muro, tinha construído uma ponte que atravessava o rio. Ele ficou muito bravo, mas quando ia brigar com o carpinteiro, viu o irmão correndo na direção dele chorando e pedindo perdão: “Depois de tudo o que eu fiz pra nos separar, você constrói essa ponte pra nos unir. Quanta grandeza.”

Em vez de brigar com o velho carpinteiro, o irmão tentou ajustar com ele um novo serviço. Mas ouviu uma negativa como resposta:

“Tenho outras pontes para construir por aí.”

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