A dureza da eterna luta pela terra nos confins rurais do país é argumento constante nas letras brasileiras. E é compreensível que assim seja; afinal, boa parte da formação civilizatória desta nação foi forjada justamente sobre essa espécie de conflito: os graves interesses colidentes entre latifundiários, trabalhadores, Estado e capital estrangeiro. Mas há muitas formas de se contar a mesma fábula, e tudo pode ser contado de outra maneira.
Vila Real, uma cidadela habitada por camponeses que da terra retiram seu alimento e para ela retornam em sepultura, sofre uma forte investida de uma companhia mineradora estrangeira, alegoricamente chamada de Caravana Misteriosa. Violentamente usurpados, os desapossados se defrontam com o dilema de partir ou resistir. Por acreditarem que a raiz se finca onde se trabalha, resistem e tentam se organizar numa luta que, sabem eles, nunca terá fim. A liderança do agrupamento é confiada a Argemiro, não por ser o melhor, mas porque encarna todos os outros. Tantos rostos, tantas vidas, a miséria e a esperança também, em cada um uma história e em todos a mesma história.
A literatura de João Ubaldo Ribeiro é conhecida por, em dados momentos, envolver o leitor num transe quase místico, etéreo, que não raro atinge um belo sublime azul. Começamos a tomar parte da narrativa e, num átimo, imergimos numa (in)consciência poética clarividente. É como se autor, após as apresentações, convidasse o leitor a gentilmente abandonar tudo e subelevar sua mente em prosa e poesia. Acontece também em Vila Real, com as sombrias reflexões do narrador e os assombrosos diálogos. Ubaldo é mestre.
Motivos para ler:
1– João Ubaldo Ribeiro foi repórter, formou-se em Direito e, aos quase 30, resolveu se dedicar à literatura. É dele o livro que consideramos ser a obra monumental das letras brasileiras: Viva o povo brasileiro, sobre o qual já dedicamos uma coluna. Membro da Academia Brasileira de Letras e vencedor do Prêmio Camões, é um dos grandes literatos do país;
2– Argemiro dirá, diante da batalha iminente: “Isso nunca vai acabar”. Estava certo. A questão da terra no Brasil remonta ao seu “descobrimento”, cujos ecos gritam até hoje. Um tema sempre atual. Basta lembrar a questão mais antiga – a indígena-, sobre a qual todos deveriam ter deferência e respeito, mas que vem sendo solapada para atender a interesses privados. Não é de se estranhar, considerando que foi promessa de campanha do atual Presidente governar para os ruralistas, além de afirmar que “índios não terão nem mais 1 cm. de terra demarcada pelo governo” e que “EUA e Brasil irão explorar, juntos, a Amazônia”. Ainda há, infelizmente, muitas Caravanas Misteriosas andando por aí;
3– Falamos da violência urbana na coluna da semana passada. Hoje, da violência rural pelas mãos de Ubaldo. Cotejando as duas obras e tudo mais que sabemos de cor por viver no Brasil, é de se questionar os motivos pelos quais este país possui níveis de violência tão altos. Deixe sua opinião a respeito.
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete a linha editorial e ideológica do Jornal da Orla. O jornal não se responsabiliza pelas colunas publicadas neste espaço.