Comportamento

Injúria contra todos nós

15/05/2021
Injúria contra todos nós | Jornal da Orla

Imagine ser atormentado pelo seu vizinho diariamente somente pelo fato de ser negro. Parece uma sinopse de um filme do diretor vencedor do Oscar Jordan Peele, mas é um fato que aconteceu aqui mesmo, em Santos.

Nesta semana (coincidentemente, quando se comemora os 133 anos da Lei Áurea), a imprensa local noticiou o caso de uma nutricionista, de 56 anos, moradora do José Menino, que colou papéis na porta de seu apartamento com ofensas do tipo “pessoas de espírito imundo” e “escória da sociedade”, por não concordar que pessoas negras morem no mesmo prédio que ela.

Foto: Reprodução

Apesar de ter sido presa por discriminar também os funcionários negros do condomínio dias antes de escrever os bilhetes, a mulher foi solta na audiência de custódia e seguiu com as agressões.

Duas delirantes certezas
O fato gerou revolta nas redes sociais, mas não é novidade para quem é negro e está acostumado com essas pequenas violências diárias desde que nasceu.

O caso ganhou amplitude pela coragem de alguém ser presa e continuar praticando o crime. Mas isso acontece porque ela tem a delirante certeza de duas coisas: a primeira, de que é superior por ser branca. A segunda, de que ficará impune.

Mas, afinal, o racismo não é mais crime inafiançável no Brasil? Por que, cada vez mais, vemos pessoas ofendendo, discriminando, agredindo outras e saindo impune? Por que a lei não é cumprida quando se trata do direito de cidadãos negros simplesmente existirem?

Para ajudar a entender o que diz a Constituição e explicar o que fazer caso sofrer, ou testemunhar, uma situação de racismo, conversei, por WhatsApp, com o advogado santista Luiz Conrrado Ramires.

O que é caracterizado como racismo na legislação brasileira?
Luiz Conrrado Ramires
– A lei contra o racismo no Brasil é de 1989 e define os crimes de preconceito de raça ou de cor. O artigo 20 dessa lei diz que racismo é “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. É um crime inafiançável, segundo a Constituição, e prevê pena de um a três anos de reclusão e multa.

Qual a diferença entre racismo e injúria racial?
Ramires –
São crimes que estão capitulados em locais diferentes da nossa legislação. A injúria racial, que está no Código Penal, visa ofender determinada pessoa, abalando o seu psicológico, usando referências da cor como forma de ferir sua honra. Por exemplo, quando um negro é chamado de macaco ou um judeu é ofendido. Tem sempre ligação com a própria pessoa. Já o racismo visa o afastamento de um grupo ou coletividade de pessoas. É quando há impedimento do exercício de direitos básicos.

Essa diferença abre brechas para a lei deixar de ser cumprida?
Ramires
– Por serem crimes diversos, não tem como “abrir brechas”. As leis devem ser aplicadas de acordo com cada crime.

Então, se o juiz achar que não foi uma injúria racial tão grave, abranda a pena?
Ramires –
A pena está sempre ligada ao conjunto probatório. O juiz faz uma análise desse conjunto, verifica a legislação, as causas de aumento e redução da pena, para levar em consideração em quanto tempo o réu vai ser punido.

Mas se o réu alega que tem problema psicológico ou que não estava num bom dia e pede desculpas, não acaba ficando elas por elas?
Ramires
– Não é bem assim. O Poder Judiciário analisa caso a caso e, com base nas situações, ele aplica a legislação. Não é porque você fala que tem algum problema, que fica por isso mesmo.

Se o racismo é crime inafiançável, por que vemos tantos agressores soltos?
Ramires
– Essa é uma questão específica do Poder Judiciário. Por ser uma pena “branda”, por vezes, pode acontecer de os acusados não ficarem presos nos limites máximos da previsão. Este caso específico que aconteceu em Santos é uma injúria racial. A agressora foi solta porque só tinha um boletim de ocorrência contra ela, uma notícia de um crime. Ainda não existe uma ação penal, que deve ser movida pelos moradores e funcionários ofendidos.

Em caso de sofrer uma situação de discriminação, como proceder?
Ramires –
Colher o máximo de provas e ir a uma delegacia. Na nossa região, todas as delegacias estão habilitadas a receberem essas denúncias. Se esse crime ocorrer na internet, é importante que a pessoa dê prints da situação em si e do nome e endereço do agressor nas redes sociais. Para que esse material seja levado à delegacia e lá eles capitulem o crime e façam o necessário para enviar ao Ministério Público.

Somente a vítima pode denunciar? Por exemplo, o torcedor está assistindo a um jogo de futebol no estádio e vê um jogador ofendendo outro. Ele pode denunciar por ter presenciado a injúria racial?
Ramires –
A injúria racial é condicionada à representação, ou seja, à abertura de inquérito. Ações penais só são possíveis se a vítima denunciar. Ela precisa de um advogado para mover o processo contra o agressor. Se a pessoa não tem condições de contratar um advogado, ela deve procurar a Defensoria Pública. O racismo não. Pode ser denunciado por qualquer pessoa e ação, independentemente das vítimas. Neste caso, é o Ministério Público que move o processo.