Livros e mais livros

Para que servem os livros?

03/06/2020
Para que servem os livros? | Jornal da Orla

Somos compostos de uma parte herdada e uma parte adquirida. O que sou hoje é reflexo de meus  antepassados, uma cadeia genética que atravessou eras para repousar no meu corpo. Eis a parte herdada: minha compleição física, padrões comportamentais e o que foi me ensinado em casa. Mas a vida segue, com novas experiências para além do convívio familiar. Tomo parte do mundo e ganho autonomia. À parte herdada une-se a adquirida.

 

Digo isto porque, para alguns, ler é natural. Foram expostos a isso desde pequenos e, ao longo da vida, só fizeram refinar o gosto. Estes compreendem bem a provocação desta crônica. Dirijo-me, portanto, ao outro grupo: àqueles que, como eu, leram qualquer coisa na infância mas, com a adolescência e a vida adulta, deixaram a leitura escanteada, útil talvez em dias de chuva.

 

Foi ali pelos 34, sem razão aparente, que algo se revirou em mim e fui aos livros. Sem saber o que ler, sem conhecer o domínio literário e seus autores, apenas pela curiosidade. E me tornei um leitor violento. Não concebo passar um dia sem passar os olhos por um bom livro. Treinado para ler rápido pela opção profissional, devoro pilhas. Refinei meu gosto com experiência e interação com outros leitores. Vivo num assombro: sei que não tenho tempo de vida para ler tudo o que desejo. Me desdobro. 

 

Mas por que ler um livro? Um passatempo, uma busca por erudição? Pergunta boa. Vejamos.  

 

Começar não é fácil. Ler é postura ativa, diferente de ver TV. A leitura te convoca. Um livro médio (300 páginas) não será lido num dia; logo, exige comprometimento. Num mundo em que a falta de tempo é uma queixa, parece um luxo dedicar horas diárias às leituras. Pra que isso, afinal? 

 

Diz Pamuk (Nobel 2006) que foi lendo romances que aprendeu a levar a vida a sério, e comigo foi asim: José Saramago mudou a minha vida. Iluminaram-se recantos desconhecidos do espírito. Sabe o que acontece quando se lê muito? Você se torna melhor, destranca conteúdos. Sua sensibilidade se aguça. Sua percepção dos outros muda. Você enxerga as entrelinhas nas suas relações. Torna-se mais interessante para si e para os outros. Você vê o mundo como ele é. Os romances te tornam menos romântico, no sentido popular da palavra, e isso é bom.

 

Não chamaria de passatempo, embora os livros me façam estupenda companhia. É uma necessidade. O fim de um livro é só o começo de outro. Uma jornada sem fim. Tudo está nos livros. É por isso que vamos a eles.