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O camisa 10 antes do rei

04/07/2014Da Redação
O camisa 10 antes do rei | Jornal da Orla
Cada peça do rico acervo de Pelé exposta no museu recém-inaugurado evoca um lance dramático que representou na década de 1950 a desventura de um craque e a sorte afortunada do adolescente promissor de 15 anos. Os dois personagens estão intimamente interligados por uma jogada fatídica, embora só um deles tenha participado do jogo.
 
O tempo chuvoso que castigava Santos no dia 9 de dezembro de 1956, um domingo à tarde, parecia antever a implacável mão do destino que recairia sobre o gramado de Vila Belmiro, onde Santos e São Paulo disputariam um partida crucial na reta final do campeonato paulista.
 
A esperança da torcida santista estava depositada no meia-esquerda Vasconcelos, que aliava toques refinados a dribles desconcertantes e chutes fortes. Sua canhota era um tormento para os beques parrudos. Bastava um vacilo e Vasconcelos desferia um petardo para estufar  as redes adversárias. Portanto, pouco importava para a galera a vida boêmia, os excessos no consumo de álcool e as noites mal dormidas do ídolo. Os gols que garantiram o titulo em 1955 estavam ainda vivos na retina de cada torcedor. O sonho do bi era alimentado pelos santistas nas arquibancadas. Afinal, tinham um número 10 genial do seu lado.
 
Mas aos 11 minutos do primeiro tempo aconteceu o inesperado. Ao receber na ponta esquerda o passe de Pepe, Vasconcelos partiu com rapidez para cima do zagueiro clássico Mauro Ramos de Oliveira na tentativa de driblá-lo. Mauro então recorreu a um artifício que raramente usava: o carrinho. Tanto que alguns o chamavam de Marta Rocha,  famosa miss Brasil na época que perdeu por ‘duas polegadas’ o título de miss Universo.  O apelido fazia referência ao modo elegante de atuação do beque tricolor, que depois, por ironia, se consagraria no Santos e como capitão da seleção brasileira na conquista do Mundial de 1962 no Chile.


 

Com o campo castigado pela chuva que começara na véspera da partida, Mauro deu o carrinho, deslizando o corpo de 1.83 de altura no gramado na busca limpa da bola. O choque entre eles, no entanto, teve desfecho trágico. O estalo da perna quebrada do ídolo santista e os gritos de dor calaram a Vila. Alguns jogadores com a mão na cabeça enunciavam a gravidade da lesão. O médico o examinou e fez sinal para o técnico. Ele sentiu a fatalidade, percebendo que o ocaso do ídolo era iminente. O lance foi o divisor de águas na história do futebol mundial. Com dez em campo e sem seu principal jogador, a derrota por 3 a 1 se tornou inevitável.
 
A  consequência principal da fratura, além de prejudicar a carreira de Vasconcelos, poucos sabem. O drama deixou a porta aberta para a efetivação como titular do garoto Pelé. O desengano da vida de um foi o início da trajetória brilhante do outro. 
“Pelé teve sorte.  Vasconcelos, que era a estrela do nosso time, teve a infelicidade de quebrar a perna no jogo contra o São Paulo. Se não acontecesse isso, talvez tudo fosse diferente”, diz Zito, capitão do Santos na época de ouro do clube. Mas ressalva:  “A chegada de Pelé  à Vila foi a coisa mais maravilhosa no futebol brasileiro. Ele chegou no time certo, na hora certa. Já demostrava talento e muitas vezes treinava sozinho para aprimorar os chutes com as pernas direita e esquerda”.
 
Pepe, o “canhão da Vila”, concorda com Zito. “Se Vasconcelos não tivesse a perna fraturada, Pelé talvez demorasse um pouco mais para ser revelado”. Com relação ao lance, Pepe lembra que aconteceu próximo à linha lateral no gol de fundo da Vila.  “O Mauro procurou se antecipar e acidentalmente caiu sobre a perna de Vasconcelos. A gente pensava que era uma lesão normal, mas depois percebemos sua  gravidade”. 
 
Em 11 de dezembro de 1956, o jornal A Tribuna publicou matéria sobre o jogo, referindo-se assim ao episódio: “O avante santista surgia como uma das esperanças dos dirigentes e torcedores. Mas quis a fatalidade não pudesse Vasconcelos oferecer sua contribuição ao trabalho do conjunto, com a agravante de positivar-se, infelizmente, ter fraturado o perônio”.
 
Três dias depois, na mesma publicação, o jornalista De Vaney sentenciou.  “Pelé esteve a pique de entrar na equipe do Santos no jogo contra o São Bento (jogo seguinte). Ficou na expectativa. O seu  lançamento, neste fim de temporada, afigura-se verdadeira temeridade, já que Pelé poderá sofrer as consequências da estreia numa equipe que está lutando pelo bicampeonato”.  Pelé estreou no time profissional do Santos, já bicampeão paulista,  em 7 de setembro de 56 contra o Corinthians de Santo André e marcou seu primeiro gol.
 
O que Zito e Pepe não disseram, mas deixaram transparecer nas entrelinhas, é um fato difícil de questionar: com Vasconcelos inteiro, com suas arrancadas e dribles, dificilmente Pelé seria titular em 56. Consequentemente, não seria convocado para a seleção em 57 e muito menos campeão na Suécia, onde recebeu o título de Rei.
Ocorre que a Divina Providência se fez presente. Tanto no início da carreira de Pelé, que teve a felicidade de ser trazido de Bauru para uma equipe repleta de estrelas, como ao longo da sua  carreira, onde jamais teve uma contusão séria. No máximo, a distensão no Mundial do Chile. O resto ficou por conta da sua obstinação e genialidade. Na época, fraturas e problemas nos meniscos eram fatais para os jogadores. 
 
“Não existiam naquele tempo os recursos médicos de hoje. Vasconcelos ficou muito tempo parado e quando voltou meses depois já não era o mesmo jogador”, completa Pepe . De fato, o jogador iniciou uma peregrinação por vários clubes até encerrar melancolicamente a carreira. Nascido no dia 25 de setembro de 1930, em Belo Horizonte, Valter Vasconcelos despontou no juvenil do Vasco da Gama, transferindo-se em seguida para a Portuguesa Santista, onde suas boas atuações despertaram o interesse do Santos. Terminou seus dias na miséria. Morreu em 22 de janeiro de 1983 em Brusque (SC), aos 52 anos.
 
“Eu era dono absoluto da camisa 10 do Santos.  Até que surgiu um criolinho de 16 anos, calado e de pernas finas, com apelido de gasolina, que entrou para a  história como Pelé”, disse Vasconcelos quando a chama do seu sucesso estava se apagando definitivamente.