Com o passar do tempo coisas e fatos se deslocam. É preciso retomar o contexto do período para entendê-lo. No início da década de 60, Santos estava para o Brasil assim como o ABC estava no final dos anos 70 e início dos 80, vinte anos depois. Trabalhadores bem pagos e organizados, capazes de ter a única central sindical municipal que já existiu, de articular greves gerais na cidade e de participar ativamente do debate político nacional. Uma presença invulgar de comunistas e esquerdistas em postos de comando, desde sindicatos até a administração pública. Era a principal cidade brasileira fora as capitais.
E havia a chamada “guerra fria”, os EUA paranoicos com novas Cubas espalhando-se pelo continente, patrocinadas pelo “ouro de Moscou”. O dinheiro da CIA, a central de espionagem estadunidense, jorrou fácil e sem limites para os golpistas civis e militares, para comprar jornais, garantir “apoio popular” e mobilizar tudo que podiam contra o governo constitucional brasileiro, entendido como um risco à segurança do quintal. Sem meias palavras, era assim mesmo que os jornais americanos tratavam a questão brasileira, qualquer arroubo nacionalista era uma “rebelião no quintal” e ponto final. Depois do Brasil viriam Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Peru, Bolívia, Venezuela, sem falar da América Central dominada por generais chapeludos desde muito antes.
Mas, como a guerra era fria, era preciso manter as aparências. Extinguiu-se a participação política em troca de dois partidos, a Arena e o MDB, um que dizia sim e outro que dizia talvez, não necessariamente nesta ordem. Eleições cartas marcadas, como a de 1965 em Santos, serviam apenas para conferir um suspiro democrático ao que não era. A oposição, por exemplo, só pôde participar da última semana de campanha.
Quem manda?
Como em todo golpe de Estado, a dificuldade era saber quem mandava. Militares também se dividem em muitos grupos e esses grupos lutavam pelo poder. Os jornais censurados, ou autocensurados, não relatavam essa luta interna. E, nas ruas, em 1968, quatro anos depois do golpe, esgarçava-se a imagem de bom-mocismo dos fardados e a oposição consentida, abrigo de toda a oposição àquela altura, começava a ameaçar, pequenos grupos estavam em armas…
Veio o golpe dentro do golpe, 13 de dezembro de 1968. Foi quando começou de fato o império dos generais doentios, dos coronéis assassinos e dos capitães sádicos. Ninguém tinha mais controle sobre os porões, os órgãos de segurança agiam como bem entendiam, lutavam entre si por poder, vingança e dinheiro. Muito mais gente morreu neste período do que durante o golpe de estado, tiveram dedos e dentes arrancados para evitar reconhecimento pericial, corpos jogados ao mar ou em valas em cemitérios ermos. O deputado santista Rubens Paiva foi um desses que até hoje não se encontrou o corpo.
Ousadia punida
Santos, um mês antes do novo golpe, havia eleito um prefeito de oposição, Esmeraldo Tarquínio, socialista e negro além de tudo. Foi deposto antes mesmo de assumir, caso único, com seu mandato cassado sem explicações, perdeu seus direitos políticos por dez anos. Foi substituído por um general sem votos e compostura. A cidade foi punida por sua ousadia: naquele mesmo ano foi declarada área de interesse da segurança nacional, não elegeria mais prefeito algum, e seria governada por homens escolhidos pelos militares.
Para a vida comum, isso significou o início da decadência a que Santos demoraria 20 anos para deter e começar a reverter. Desemprego, empresas fechadas, falidas, sedes transferidas para outros lugares, em pleno milagre brasileiro. Por aqui não se viu dele. Com a vida política extirpada, a cidade foi calada a muque. A população foi simplesmente afastada para o lado. Um exemplo disso foi colocar um terminal de grãos na Ponta da Praia, contra todo bom senso técnico e político. Poluição e qualidade de vida eram termos que só “subversivos” empregavam. E ser subversivo era comprar uma passagem só de ida, se me entendem.
Medo geral
Nas salas de aula, professores e alunos com medo, uns dos outros e de todos, havia mais de 600 informantes pagos pelos órgãos de segurança, uma sopa de letrinhas como SNI, Ciex, Cenimar, Dops e outras, às quais se juntavam vigaristas civis do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, a Falange Pátria Nova, FPN, e mais um bando de gente que está muito bem no lixo da história. Todos eles para vigiar seu jeito, suas ações, suas palavras, o tamanho de seu cabelo, a música que você ouvia, os jornais que lia, os livros…
Roubo dos cofres públicos nunca houve nem haverá como naquele período. Foi um saque generalizado. Quem vê a corrupção sob a democracia não pode ter ideia do que foi aquilo. Estradas inteiras foram pagas e não construídas, ouro de fundos nacionais foi transferido para particulares em aviões militares, as embaixadas brasileiras eram conhecidas como “dez por cento” em todo o mundo, não havia limites ou controle – ainda pagamos hoje por desvios gigantescos feitos naquele tempo.
A Prefeitura de Santos, por exemplo, gastou mais dinheiro que a Petrobras anunciando na revista O Cruzeiro, que tentaram reviver para apoiar os paramilitares e atacar a esquerda. O intermediário era um ex-agente do SNI, que acabou morto num barco, no Rio, quando denunciou que militares estavam exportando material nuclear para o Iraque por baixo da mesa. Um caso de fidelidade, Alexandre Von Baungarten era agente duplo, trabalhava para o Mossad, serviço secreto de Israel. Assim era que se fazia e resolvia as coisas.
Pouco interessa nomes a esta altura. Cinquenta anos depois, é mais importante termos uma ideia do ambiente em que se viveu, para entender que democracia é o pior regime do mundo, com exceção de todos os outros. Quem chegar perto de mim defendendo aquele golpe ordinário ou, inescrupulosamente, pedindo que voltemos àqueles tempos leva um pé d`ouvido. Esses dias estou sem paciência, é o transcurso de 50 anos de algo do qual, como diria Ulisses Guimarães, tenho ódio e nojo. Espero que a terra não lhes seja leve.
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