-Eu recordo, falava a senhora, no círculo de amigas, -como eu era.
-Impetuosa, falava sem pensar. Dizia o que me vinha à cabeça e achava que era dona do mundo. Caprichosa, queria as coisas do meu jeito e gritava, e exigia, sem parar.
-Meticulosa, atinha-me a mínimos detalhes. Arrumava o quadro que estivesse um milímetro torto na parede, arrumava o enfeite sobre a mesa.
-Entrava em casa e meus olhos procuravam algo que estivesse fora do lugar, para eu ter o prazer de colocar no lugar. E reclamar de quem não o colocara exatamente como eu desejava.
-Meu armário de roupas era impecável. Todas as roupas alinhadas, divididas por estação, por cores. Eu podia procurar uma roupa no escuro e a encontrar. Mas, ai de quem ousasse mexer no armário.
-Eu tinha a capacidade de saber se alguém sequer abrira o armário. E era motivo para uma grande discussão.
-Tinha os livros em uma grande biblioteca. Separados por autor. Por assunto. Tudo em absoluta ordem alfabética, para facilitar a busca.
-Naturalmente, ninguém podia tocar nos livros a não ser que eu apanhasse a obra e a entregasse em mãos.
-E as recomendações eram inúmeras. “Cuidado com a capa. Não amasse. Lave bem as mãos antes de abrir o livro.” Sim, eu era assim. Nada do que qualquer pessoa fizesse era suficientemente bom para mim. Eu fazia a limpeza da casa, porque ninguém fazia como eu. E consumia as horas em ordenar, alinhar, agrupar, ajustar. Para tudo ficar sempre impecável.
-O tempo passou. E descobri que eu estava errada em muitas coisas.
-Quando minha irmã partiu, bruscamente, levada por um acidente de carro, senti o coração despedaçar.
-Então, olhando a casa vazia da sua presença, me perguntei de que valia tudo estar em ordem, impecável? Eu daria tudo para que ela estivesse ali, e entrasse e bagunçasse os meus livros, a minha louça, as minhas coisas.
-Queria vê-la abrir meu armário e escolher uma roupa para vestir, retirando da ordem tanta coisa que estava ali, parada, sem uso.
-Depois, partiu meu irmão, minha mãe. Um a um, eles se foram. E, a cada partida, eu fui descobrindo que o bom é se ter a casa para as pessoas entrarem e se sentirem bem. Viverem, sem serem sufocadas.
-Descobri que, mais importante do que tudo, aquelas presenças agora ausentes é que davam mesmo sentido à minha vida. -E, então, eu mudei.
-Ainda gosto, sim, das coisas arrumadas, em ordem. Mas, sem exageros. Meus sobrinhos entram em minha casa e brincam. E pulam, sentindo-se à vontade.
-Sento-me com eles no chão para folhear os livros, ler histórias, olhar gravuras. E , enquanto lemos, comemos pipoca, chocolate. Tomamos suco.
-Como é bom saborear histórias com alguém ávido de curiosidade. Mesmo que tenha os dedinhos sujos de chocolate ou engordurados pela pipoca.
-Meu armário de roupas já não anda tão intocável assim. As sobrinhas adoram procurar algo diferente para usar. Nem que seja para o baile à fantasia com suas amigas.
-Aprendi a aceitar o trabalho alheio e respeitá-lo, agradecendo.
-As horas que passaria encerando, limpando, lustrando, lavando, eu dedico às crianças, aos jovens, aos meus amores. Sim, eu mudei muito. A vida me ensinou.
-Pena que eu tenha precisado receber tantos recados de perdas, para poder aprender.
Poderia ter sido muito mais feliz, desde há muito tempo.
-Agradeço ao Grande Arquiteto do Universo, no entanto, ter acordado a tempo de ainda desfrutar muitas alegrias, na Terra.
-Sinceramente espero que nenhuma de vocês precise passar por isso para aprender.