Opinião

Mulher na vidraça

15/03/2025 Vicente Cassione
Mulher na vidraça | Jornal da Orla

Eram cinco da tarde.

Um sol pálido acendia as fachadas dos edifícios marginais da Avenida Nove de Julho, trilha impossível de uma cidade sem caminhos.

Os prédios enegrecidos e impregnados de todas as fumaças ainda assim revelam um tom ouro velho, sob este sol de inverno, quando morre a tarde.

De repente, no tráfego inerte diante de janelas infinitas, descubro uma vidraça com o desenho vivo de uma mulher tendo nos braços uma criança.

Ambas parecem compor uma fotografia antiga, imagem envelhecida e amarelada pelo sol na moldura de um prédio imundo. Estão imóveis, olhares vagos sobre um ponto desapercebido na cidade em fúria, além da vidraça.

É uma mulher ainda moça, cabelos longos, descuidados, e aos meus olhos compadecidos, ela pode ser bonita, até.

Um ano ou dois, tem a criança, de roupa desbotada e simples, como a da mãe.

O trânsito avança e logo elas ficam para trás do meu caminho, e nem puderam adivinhar que permaneceram comigo. Amarguei a solidão daquela mulher no confinamento de todos os dias, cujo horizonte não ultrapassa a vidraça onde o olhar se perde a esperar o homem, passageiro da noite.

Agora, nas horas intermináveis do dia, esse homem estará cumprindo os calvários de uma cidade sem caminhos, abatendo moinhos de vento, herói sem nome de uma multidão sem cara.

Esse homem é forte porque consola-o retornar com a noite, e ela o estará esperando, valente mulher de Malaparte, guardiã de seu nome, de seu filho, de seu lar, de sua cama. Essa mulher é nobre porque não desaprendeu de amar.

E essa criança descobrirá quem sabe, um dia, o segredo das ausências obrigadas pela vida: a mãe solitária, incansável, esperando o pai que ele não vê regressar, no meio da noite.

Sigo meu caminho sofrendo a dor dessas criaturas que o amor aproxima, mas a vida distancia. Estou orgulhoso da mulher, na vidraça. Ela é digna e abnegada e, sem isso, a mulher, simplesmente, não é.

Na viagem de volta, comovido, guardo a imagem dessa madona na moldura de uma janela suja, fêmea esperando o homem, mãe acalentando o filho, árvore da vida, mulher, como Deus a fez.