- Ainda Estou Aqui não politiza. Limita-se a contar o que aconteceu. Deixa a avaliação para quem assiste ao filme.
Uma observação precisa e inspirada sobre Ainda Estou Aqui é a de que o diretor Walter Salles constrói um castelo dourado na primeira parte do filme e retrata o desmoronamento desse castelo na segunda metade.
Questão de sensibilidade para captar essa possibilidade de abordagem. O casal Rubens e Eunice Paiva vivia essa realidade dourada no começo da década de 70 no Rio de Janeiro: cinco filhos, trabalho, amigos, casa de frente para o mar. Mas o pano de fundo era o regime militar, com censura e tortura.
A interface era de alto risco. Quando o cenário sombrio invade a intimidade da família, os anos dourados se transformam abruptamente em anos de chumbo. A tragédia está instalada.
Contar essas histórias é extremamente importante. E o filme consegue a proeza de relatar com delicadeza um roteiro de desumanidade e brutalidade.
Rubens Paiva foi preso pelos agentes da ditadura, torturado, morto e o corpo nunca foi encontrado. O crime foi encoberto, escondido pela ditadura militar brasileira.
É importante abrir parênteses para falar de tortura.
Ponto primeiro: A tortura é proibida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigo 5º: “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.” O Brasil está entre os 48 países que aprovaram e assinaram a Declaração em 1948.
Ponto segundo: A tortura é provavelmente o mais covarde de todos os crimes. O terrorismo também é terrivelmente covarde: mata, mutila, impõe sofrimentos a todos os tipos de pessoas inocentes. O abuso sexual de vulneráveis ou frágeis também é terrivelmente covarde. A vantagem da tortura nesse ranking de horrores é que no terrorismo e nesses crimes sexuais, os autores se arriscam. Podem ser identificados, alcançados e punidos. Na tortura, principalmente a exercida por agentes com algum tipo de autoridade, o risco é praticamente inexistente. O torturador está protegido pela cumplicidade dos donos do poder.
Ainda Estou Aqui não politiza. Limita-se a contar o que aconteceu. Não carrega nas tintas da arbitrariedade e da truculência. Deixa a avaliação para quem assiste ao filme.
Castelo desmoronado, Rubens desparecido, aflora a energia, a liderança, a determinação de Eunice, que, de dona de casa, coadjuvante de um marido protagonista, passa a ser a figura principal. E aqui é importante destacar a impressionante atuação de Fernanda Torres nos dois momentos. A construção dramática da Eunice pela atriz talvez seja o ponto mais alto, até agora, de uma carreira absolutamente brilhante.
Ela está coadjuvada à altura por Selton Mello que, ainda que um pouco ofuscado pelo brilho superlativo de Fernanda Torres, também faz uma grande interpretação de Rubens Paiva.
Ainda Estou Aqui é necessário por dar concretude atual a crimes que ficaram esmaecidos na história do país primeiro pela censura e depois pela anistia. Preenche uma lacuna. E é urgente porque surge num momento em que esse tipo de radicalização contra qualquer um que pense de maneira diferente, típico das ditaduras, ressurge anabolizado justamente por essa espécie de prescrição histórica. As gerações atuais não tiveram contato com essa fase não-democrática do país. E as que conviveram com ela nunca tiveram um acesso tão claro a esse tipo de conhecimento.