Crônica

Mentira com rabinho de verdade

21/06/2024
Divulgação Câmara dos deputados

Um dos elementos mais perversos das usinas de informações falsas e do discurso de ódio é a ligação com a realidade. Porque convence. Nesta semana, o país assistiu a um exemplo vivo dessa técnica ilusionista. O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) postou, num vídeo, essa inacreditável declaração:

“Há uma indústria mundial liderada por George Soros que patrocina mundo afora o aborto (…) porque eles vivem de empresas também que dependem do feto humano para fabricar cosméticos”.

O deputado é autor do projeto de lei que ficou indevidamente conhecido como PL do Estuprador. O projeto equipara o aborto realizado depois das 22 semanas de gestação ao homicídio. E introduziria na legislação penal brasileira uma aberração: a vítima de estupro, se só conseguisse o aborto a que tem direito depois desse prazo, estaria sujeita a uma penalização de até 20 anos de prisão, enquanto o estuprador, o verdadeiro criminoso, estaria sujeito a no máximo 10 anos, a metade.

O deputado fundamentou essa acusação esdrúxula à indústria de cosméticos em denúncias de fatos isolados, antigos, e que nem sequer foram provados. Mas que circularam nos meios de comunicação. Daí, quem lê a declaração de Sóstenes Cavalcante, lembra vagamente disso, relaciona e arquiva na memória esse absurdo: a indústria de cosméticos utiliza fetos, por isso que há tanto aborto. Se essa pessoa não leu no passado, alguém, numa conversa, vai confirmar. E aí, até provar para essa pessoa que assimilou essa tese destrambelhada que focinho de porco não é de 220 volts, adeus… Nunca mais.

Vamos imaginar um exemplo: alguém como esse Sóstenes quer prejudicar um aplicativo de transporte como o Uber. Pega três reportagens  verdadeiras de motoristas que roubaram e estupraram passageiras e não foram identificados e inventa a tese de que o Uber estimula o estupro e fica com metade do produto do roubo para esconder a identidade do ladrão / estuprador. E complementa: por isso que as corridas são tão mais baratas que as dos táxis.

Há um histórico de crimes horrorosos de todos os tipos à disposição de quem quer inventar essas informações falsas. Já houve, por exemplo, assassinos canibais. Estupradores de bebês. Sequestradores que mantém em cativeiro e torturam as vítimas por décadas. Como pode haver, também, criminosos que utilizem tecidos de fetos em cosméticos. Esses crimes são casos de polícia. Quem tem conhecimento deles tem a obrigação de fazer a comunicacão às autoridades, não de associar irresponsavelmente, de forma fantasiosa, uma comunidade, uma atividade, uma empresa a eles.

Sóstenes Cavalcante não está sozinho nessa aventura, A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) também denunciou tráfico de crianças, tortura e abuso infantil no Arquipélago do Marajó e depois não provou nada disso.

Ela chegou a dizer que teria imagens de crianças com oito dias de vida sendo estupradas. E que um vídeo com este conteúdo era vendido por valores de até R$ 100 mil. E também que crianças do Arquipélago do Marajó traficadas tinham, os dentes arrancados “para elas não morderem na hora do sexo oral”.

O pastor / deputado Marco Feliciano (PL-SP) confessou que inventou na campanha eleitoral que se Lula ganhasse iria fechar as igrejas. Para confirmar a tese, a lorota vinha acompanhada de um vídeo de um suposto fechamento de uma igreja no Chile depois da vitória eleitoral do esquerdista Gabriel Boric. Conheço gente inteligente que acreditou nessa história. Não vá você, leitora / leitor acreditar nesse exemplo que eu inventei do Uber… rsrsrs